Eu não gosto de palavras – Por Vinícius da Silva
Eu não gosto de palavras
Escrevo a mim mesmo cartas de amor. Trovas de um belo senhor. Escrevo na tentativa de compreender o que se passa em meus pensamentos, ora vãos, ora dispersos em minha arquitetura cognitiva, consciência. Escrevo a mim, embora pareça para outros, e somente a mim, palavras-atos-acontecimentos. Construo a mim mesmo na escrita, posso ser o que quiser. Já não me vale mais o contato, a socialização, “eu pertenço a este lugar de palavras”. Eu preciso pisar neste chão. Com pés que não os meus, quem pisaria em ti por mim, senão eu mesmo, meu próprio sujeito, a busca pelo todo. E busco respostas para perguntas que a filosofia não pode responder. Talvez nem eu mesmo possa responder, senão com novas perguntas, dando início ao interminável ciclo da consciência humana. Documento, em meu diário, meus dias e momentos. Escrevo a mim mesmo cartas de amor. Não porque preciso, mas porque escrevo. Cartas de amor. De amor ao mundo. E o mundo sou eu. Talvez as pessoas se perguntem – e se não, a pergunta passará a existir a partir de agora em algum lugar e, portanto, ela será feita, mesmo que por mim, ou por pessoas que inventei – porque eu não gosto das palavras e gosto de muitas coisas que, em diferentes momentos da minha vida, foram objeto de meu foco. Não por falta de interesse, mas por vontade de entendimento. O entendimento do todo buscado por todos. Sem exceção. Qualquer ser vivo, que se chame de humano, quer entender o todo. A essência constituinte das coisas. O inefável do real. Mate o humano que há em você se não buscar o que quem se chama de humano busca. Mesmo que isso implique em matar a si mesmo. Mate e morra. Abra espaço para o esquecimento. Veja-o. Certa vez, quando minha mãe me pedira para ir ao armazém e eu esquecera de um item da lista. A lista que registrada estava em minha cabeça. É como se eu deixasse um pedaço de mim na rua. Esquecesse-me. Abandonara-me. E talvez as pessoas se perguntem por quais inúteis razões isso acontece. A verdade eu esqueci. Fiz questão de esquecer para continuar escrevendo. Usando palavras que não gosto. Nem sempre gosto do significado que elas carregam. Porém, é o que temos. Não gostar das coisas não precisa de explicação. Não gostar é esquecer de gostar. De como gosta. Ou de como faz para gostar. E eu não gosto dessas palavras, de nenhuma das que usei neste breve movimento de esquecimento. Mesmo assim, uso-as. Só há como comunicar com elas. Ou não. Eu também comunico com sons, imagens, gemidos… A comunicação é uma conexão que não depende da palavra e por isso mal pode ser explicada. A comunicação depende da linguagem. Eu gostaria que a comunicação não dependesse nem da linguagem. Eu gostaria de esquecer a linguagem, apesar das palavras. Pode-se dizer. Não. A comunicação. Comunicar. Arte do contato. Da transmissão. Do compartilhamento. Retirar de si e doar ao outro. É preciso ser o outro. Os nossos rostos são compartilhados. Dói. Ter um rosto dói. A interminável dor de ser quem se é. Mesmo que eu me esqueça de quem sou. Dói tanto. Eu me lembro de ser. E continua doendo. Porque ser é doer. E às vezes viver dói tanto. Dói a ponto de não mais doer. E aí a dor atinge um estágio crítico. Beira a apatia. É preciso tomar cuidado para não deixar doer demais. Quando a dor deixa de ser sentida. Porque não há de cessar. Nada mais dói em nós. Nem a dor do outro. Que é uma dor compartilhada. Infelizmente. Dói tudo em todos. E assim é a vida. Viver é dor. Nascer é dor. Morrer não. Morrer é alegria. É excitação. A morte é um estado de excitação. É o único estado em que não pensamos. Não agimos. Não vivemos. Portanto, não doemos também. Estar morto não é não estar vivo. Não é esquecer da vida. A morte é um estado de consciência. Não pensamos a nós mesmos quando morremos. Não doemos quando morremos. As palavras são bonitas na morte. Porque não existem. Como aquela fotografia de quando eu era pequeno que está na sala da casa de minha avó. As palavras passam à decoração. Decore-se com palavras e seja imagem. Esta sim comunica algo. De tantas maneiras. Não posso sequer pôr em palavras o que a pintura que vira mais cedo causaste em mim. Seria uma violência de tal grandeza que a pintura deixaria de sê-la. Assim como eu deixo de ser quando morro. Apesar das palavras. O pesar das palavras. Este é o verdadeiro estado de alegria. Uma casinha bem pequenininha, onde as palavras decoram o jardim de flores. Jardim silencioso de palavras. Barulhento de vida. Outra vida, porém. Não mais a vida que dói. A vida que encontramos na morte. Morrer é viver, então. A diferença é simples. Não posso contar. Se eu lhe contasse o segredo da morte vivida, ela deixaria de ser. Violência de tal grandeza. Recuso-me a abrir aquele meu diário antigo onde escrevera sobre isto: a ausência das coisas. Que não é a morte, embora eu pensara nela desta forma. Se eu pudesse me desculpar com a morte, porém, não sei se o faria também. Não seria necessário, pois não haveria palavras para tal ato. Se houvesse, deixariam de existir no momento de sua enunciação. A linguagem opera de forma inversa quando morremos. Não há mais o que criar, apenas o que esquecer. Se praticássemos o esquecimento, talvez entenderíamos o que o tempo, compositor de destinos, gostaria de nos dizer. Escrevendo este pensamento, esta tentativa de me situar no apartamento de Clarice, busco também entender o que o tempo faz conosco. E as palavras fogem neste momento. Não há o que dizer sobre. Há apenas o que sentir. A sensação da comunicação entre o tempo e nós mesmos. O inefável, neste breve momento, torna-se um borrão frente à nossa chance de contemplar o real. E então acordamos. O êxtase não fora suficiente. Acordamos e voltamos a viver, porque a morte não estava no caminho que seguimos desta vez. Talvez amanhã – que pode ser qualquer dia – encontraremos o caminho certo. Não há rota. Acordar do breve momento é o que nos motiva a continuar buscando. E isto é o que constitui a vida. A busca. Por respostas. Ou palavras outras. Tudo nos levará ao inefável, à realidade inacessível das coisas todas. Por um momento, sinto como se eu tivesse acessado o real. Minhas mãos tremem, minha voz some. As palavras não mais fazem sentido quando tento dizê-las. A linguagem não mais constitui a minha essência humana. Nem humano sequer sou. Mesmo que em três línguas diferentes. O real então esvai-se frente à natureza temporária de todas as coisas. Como uma correnteza que nos carrega a lugares outros em mares ou cachoeiras. O real foge à compreensão e à tentativa representacional que nos cerca. Mesmo em meus devaneios de acesso, parece haver tantos reais diferentes que a vontade de representar toma o meu corpo. Neste momento, esqueço-me, porém, de como viver e, apesar das palavras, abro as portas à morte.
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No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2020, da Silva apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa, e é revisor e atua no setor de Pesquisa Qualitativa da ONG TODXS. Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Queer, Arte Contemporânea, Poéticas Visuais, Teoria Feminista Negra e Artes Plásticas. Site: https://www.viniciuxdasilva.com.br/