Festa – Por Hugo Lorenzetti Neto
Na coluna mensal “Jerônima” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), a bonita Hugo Lorenzetti Neto nos traz – no melhor estilo eu-miss-desejo-a-paz-mundial – traduções de autoras e autores de diversas línguas e partes do globo. Diplomacia com plissado rosê. Regras: 1) cada coluna é um baile temática, os textos traduzidos têm um tema em comum; 2) uma espécie de ensaio inédito do colunista amarra sempre as traduções. A coluna irá ao ar sempre na última quinta-feira do mês.
Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram).
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Festa
Quis enviar um ensaio sobre Virginia Woolf a uma revista. Mrs Dalloway é meu livro favorito. Quis escrever sobre a notícia da morte de Septimus Warren Smith quando ela invade a festa de Clarissa. Eis a morte no meio da festa.
Quando era casado, dávamos festas e toda vez dizíamos – ele, que fazia o trabalho mais que eu, e quando não o fez, fizemos juntos, acho que sozinho devo ter ido umas duas vezes e, sim, foram muitas festas – “vou comprar as flores eu mesmo.”
Acontece que a última festa que demos ainda casados foi uma com Victor Heringer. Era a Communist Party, e Carlos fez uma fantasia de Laika pro Victor. A notícia da morte de Victor, cinco meses mais tarde, interrompeu a memória da festa. Também a memória de uma forma de viver com Carlos, que começou a morrer ali. E Clarissa Dalloway – e Virginia Woolf.
Nunca escrevi muito sobre Victor. Exceto nesse artigo, que não é este que faço agora e você lê depois. Nunca achei que poderia ou deveria, ainda que ele tenha uma vez feito um despacho para eu pegar alguém por aí e que funcionou, e outras coisas. Ele se molhava todos os dias na minha piscina. Mas e daí?
Clarissa fetichiza o suicídio: ela vê em Septimus Warren Smith uma espécie de herói romântico. Non serviam extremo.
Esta é a cena do suicídio de Septimus. Escutamos seus pensamentos.
“Holmes was coming upstairs. Holmes would burst open the door. Holmes would say “In a funk, eh?” Holmes would get him. But no; not Holmes; not Bradshaw. Getting up rather unsteadily, hopping indeed from foot to foot, he considered Mrs. Filmer’s nice clean bread knife with “Bread” carved on the handle. Ah, but one mustn’t spoil that. The gas fire? But it was too late now. Holmes was coming. Razors he might have got, but Rezia, who always did that sort of thing, had packed them. There remained only the window, the large Bloomsbury-lodging house window, the tiresome, the troublesome, and rather melodramatic business of opening the window and throwing himself out. It was their idea of tragedy, not his or Rezia’s (for she was with him). Holmes and Bradshaw like that sort of thing. (He sat on the sill.) But he would wait till the very last moment. He did not want to die. Life was good. The sun hot. Only human beings – what did they want? Coming down the staircase opposite an old man stopped and stared at him. Holmes was at the door. “I’ll give it you!” he cried, and flung himself vigorously, violently down on to Mrs. Filmer’s area railings.”
Antes de apresentar minha tentativa: como se traduz a dor? Clarissa, no início de sua caminhada por Londres pensa na morte – e que talvez o cessar absoluto possa ser um alívio. E depois ela diz que Septimus ao se matar tinha algo que mais ninguém tinha – e dispensa a morte. Claro, pode-se dispensar a morte – dispensa-se a dor?
Quis traduzir a dor de Septimus – onde se esconde a dor de Virginia Woolf. E Woolf se esconde na Clarissa que foge, também: num sonho ou num livro tudo o que tem é parte de quem o fez – consciências e subjacências, arte e lapso.
A dor:
Holmes estava subindo. Holmes arrombaria a porta. Holmes diria “Surtado, né?” Holmes o agarraria. Mas não; nem Holmes, nem Bradshaw. Levantou-se meio desequilibrado, pulando mesmo de pé em pé, considerou a faca de pão bonita e limpa da Sra. Filmer com “Pão” talhado no cabo. Ah, mas não devia estragar uma coisa assim. O fogareiro? Mas era tarde demais. Holmes estava a caminho. Giletes ele devia ter, mas Rezia, que sempre fazia esse tipo de coisa, as havia empacotado. Sobrou apenas a janela, a grande janela da hospedagem em Bloomsbury, a cansativa, inoportuna e um tanto melodramática tarefa de abrir a janela e se atirar para fora. Era o ideal de tragédia deles, não o dele nem o de Rezia (porque ela estava com ele). Holmes e Bradshaw gostam desse tipo de coisa. (Ele se sentou no parapeito.) Mas esperaria até o último minuto. Ele não queria morrer. A vida era boa. O sol quente. Apenas os seres humanos – o que eles queriam? Descendo a escadaria do outro lado da rua, um velho parou e olhou para ele. Holmes estava na porta. “Eu vou dar você!” ele gritou, e se arremessou vigorosamente, violentamente, para cima das grades da Sra. Filmer.
Traduzir um personagem que não quer estragar com sua própria vida uma faca de pão, e se arremessa contra as lanças do portão da dona da faca. Um ou dois anos antes de eu entrar na faculdade de Direito, que larguei logo, uma menina havia se jogado sobre as lanças do túmulo de Júlio Frank – serraram e soldaram de novo, as lanças guardavam as cicatrizes da menina morta. Um grito sem gramática: a linguagem se desfaz. Sim, a vida é boa e o sol é quente. Mas a linguagem acaba.
Como faz para traduzir a dor? E a dor final? Nós os vivos, como fazemos – como a gente traduz o que se desagrega?
“Dearest,
I feel certain I am going mad again. I feel we can’t go through another of those terrible times. And I shan’t recover this time. I begin to hear voices, and I can’t concentrate. So I am doing what seems the best thing to do. You have given me the greatest possible happiness. You have been in every way all that anyone could be. I don’t think two people could have been happier till this terrible disease came. I can’t fight any longer. I know that I am spoiling your life, that without me you could work. And you will I know. You see I can’t even write this properly. I can’t read. What I want to say is I owe all the happiness of my life to you. You have been entirely patient with me and incredibly good. I want to say that – everybody knows it. If anybody could have saved me it would have been you. Everything has gone from me but the certainty of your goodness. I can’t go on spoiling your life any longer.
I don’t think two people could have been happier than we have been.”
“Meu querido,
Sinto-me certa de que estou enlouquecendo de novo. Sinto que não conseguiremos atravessar outros desses tempos terríveis. E não me recuperarei desta vez. Começo a ouvir vozes, e não consigo me concentrar. Então faço o que parece ser o melhor. Você me deu a maior felicidade possível. Você foi de todas as formas tudo o que ninguém mais poderia ser. Não acho que duas pessoas terão sido mais felizes até que esta doença terrível viesse. Não consigo lutar mais. Eu sei que estou estragando a sua vida, que sem mim você poderia funcionar. E você vai eu sei. Veja, nem consigo escrever direito. Não consigo ler. O que quero dizer é que devo a você toda a felicidade da minha vida. Você foi todo paciente comigo e inacreditavelmente bom. É o que quero dizer – todos o sabem. Se alguém poderia ter me salvado teria sido você. Tudo partiu de mim exceto a certeza da sua bondade. Não posso mais seguir a estragando a tua vida.
Não imagino que duas pessoas tenham sido mais felizes que nós.”
Você vê que está tudo aí? A faca de pão, Leonard Woolf. A vida é boa e fomos felizes. O sol quente. A nossa escritora não consegue mais ler e ouve vozes – e não fecha a carta, que se estilhaça no fim do papel.
Traduzo tentando sem conseguir imaginar a dor do meu amigo – mal sei dizer da dor de sentir sua inexistência no agora, imagine. Quando as palavras se partem, se estilhaçam, como é a dor? Não há resposta. Não é bonito: a dor dói e pronto. É assim: eles se desfazem em linguagem e a gente, nós os vivos, a gente tem medo dos próprios poemas que escreve: e se a sublimação for muita, perigosa, como descreveu Freud – o sangue que espirra. E a dor dói e pronto e depois talvez doa menos porque o amor se vira para os outros vivos.
Como no fim de Mrs. Dalloway. Ela caminha para Peter, seu antigo pretendente que então vivia na Índia. Ela volta para a festa depois de dispensar a morte não convidada. Ele a vê e ela o enche de vida – nada renasce, a vida já estava.
“For there she was.”
“Porque lá estava ela.”
E aí está você, e aqui estou eu. E o sol pode ser que esteja quente lá fora.