Fim de verão, de Paulo Henriques Britto – Por Elvis Barbosa Caldeira Silva
Elvis Barbosa Caldeira Silva (1992) é mineiro de Uberaba, graduado em Letras – Português/Inglês pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pai nas horas todas, compositor e poeta nas horas outras. Guarda num caderninho secreto de 9×13 centímetros palavras em línguas estrangeiras que beliscam os ouvidos, como: loathsome, dibujo e nuage.
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Partitura sem notas
Em Fim de verão, Paulo Henriques Britto utiliza de recursos musicais junto a seu trabalho poético repleto de autocrítica e de reflexões sobre as (im)possibilidades da vida e da poesia.
Ao abrir Fim de verão, recém lançado livro de poemas de Paulo Henriques Britto, fica explícita a questão musical que é engendrada no novo projeto. Anacruse é, para além de um ornamento melódico que introduz o primeiro compasso em uma partitura, o título do soneto que estréia o volume. Seu conteúdo se vale de uma autocrítica que desliza para a crítica da própria poesia. A nota que soa mais forte é a da ironia, pois o poema, escrito entre aspas, representa o que parece ser um recorte crítico de um texto midiático, com ares de resenha, sobre a própria obra. É com esse registro caricatural, que tira sarro de quem escreveu e de quem lê, que Fim de verão é desvelado ao leitor, não sem antes (des)informar que as próximas páginas serão constituídas por uma: “poesia rala e pobre”, “bem calculista” e ainda “pobre em imagens, pouco musical.”.
Prevalecem em Fim de verão os motivos caros a Britto que, desde Liturgia da matéria (1982), tingem as páginas de sua produção. Entra-se em contato com a filosofia, a metacrítica, os poemas em língua inglesa e algumas autotraduções, as imprecisões do eu e do sentido e o risco iminente de uma existência posicionada entre as: “[…] armas novas da farmacopeia” e o: “[…] rigor secular do soneto”. Em Cosmogonia para todos vislumbra-se o macrocosmo poético da obra. O poema é o campo para o qual as contradições concorrem e onde passado, presente e futuro se imiscuem: “Num mesmo espaço, lado a lado,/ […] o vivido e o só desejado/ se acotovelam, imiscíveis”. O livro abarca várias vozes, destaca-se a de Dickinson. Em Três traduções e treze variações sobre um poema de Emily Dickinson a poesia da autora norteamericana é malhada como ferro quente até resultar em poemas com a assinatura do poeta-tradutor carioca.
Observa-se a influência de Fernando Pessoa e Charles Baudelaire pela obra, como no poema Ao leitor que, para além da referência ao primeiro poema de As flores do mal, provoca-nos sobre a crise do sujeito poético e o endereçamento: “Quem fala no poema é mais ou menos/ quem assina – mais menos do que mais. […] Leia até rebentar, leitor amigo.”. João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade engrossam o coro na seção poética Fim de verão. No poema VIII, há a retomada crítica da influência cabralina e o desejo de que se arrisque para além do: “[…] âmbito mineral,/ de tudo que não vive. Que não morra”. Em X, a tensão entre a rejeição e o desejo faz a vida emergir como a flor drummondiana: “[…] num deserto de móveis decrépitos,/ mofo e lixo, ela insiste, insinua-/-se nas fendas, aferra-se aos restos”.
Tal polifonia, cedo ou tarde, transforma-se em ruído: “É um som insignificante/ esse que chega ao seu ouvido”. Que poderia a palavra ou o som diante do ódio? Em Água de rosas uma possível resposta: “a meta é manter sempre/ viva uma quase esperança”. A crítica ao ódio e à estupidez aparece em I. Imunidade de rebanho: “Pensar é coisa trabalhosa. A ignorância/ é o sumo bem dos cidadãos de bem”. Em Fim de verão, nota-se o exímio manejo da forma pela música: “[…] uma sonata que Beethoven/ não houvesse tido tempo de compor.”. Os elementos musicais, as variações do soneto e a presença de nomes como Beethoven, Edvard Grieg e Cartola, promovem certa organização do caos da palavra e ajudam a definir os limites entre o sujeito e a coisa criada. Coda encerra a peça, retomando o que deveria soar mesmo sem notação: “Toda vida é provisória […] Viva e escreva e não se abale./ Você não é o que você escreve.”.
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BRITTO, Paulo Henriques. Fim de verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 94 p.