Um texto de Pinheiro Rodrigues
Pinheiro Rodrigues é professor universitário e escritor nas horas vagas. Em 2020 publicou o primeiro livro de literatura intitulado “Baobá: a árvore da vida”. Para saber mais sobre o autor, acessar o site pinheirorodrigues.com.br
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POR QUE CHORAS?
“Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente” (Jiddu Krishnamurti).
“(…) eu vi o mundo inteiro. Não há lugar melhor pra fazer um país que este. Mas tem uma classe dominante ranzinza, azeda, medíocre, cobiçosa, que não deixa o país ir pra frente” (Darcy Ribeiro).
— Por que esperar, se podemos abreviar a vida desses miseráveis ainda hoje?
Era uma pergunta perigosa feita por William a Phelippe, Marcel, Natasha van Hatten, Sarah e ao irmão dela, todos filhos da classe mais poderosa daquela cidade. Noite de véspera de natal. Há pouco haviam entrado em um acirrado debate sobre a condição de vida de moradores de rua. Natasha solitariamente argumentava que era preciso considerar as condições sociais para entender porque pessoas viviam na rua… O restante concordava que estavam lá por escolha. Poderiam ter sido médicos, advogados, empresários bem-sucedidos, mas por serem preguiçosos, vadios e alcoólatras, terminaram na sarjeta.
— Seja mais objetivo, William. O que faremos então?
— Podemos fazer muitas coisas, nobre Marcel. Atropelo de madrugada, tiro ao alvo, botar fogo em algum dorminhoco bêbado, surrar um vagabundo na rua, como aquele “herói” de Mato Grosso que abaixou o vidro do carro, ofereceu R$ 20,00, e quando o zumbi se aproximou, acertou um belo de um tapa em seu rosto. Mas hoje sou partidário de uma ideia mais simples: entregar comida envenenada…
— Eu não acredito que vocês estão falando sério!
— Cale-se, Natasha! Já encheu o saco esse esquerdismo careta… Prossiga William.
— Marcel, você tem veneno?
— Acho que não.
— E se quebrarmos a garrafa de Wiskhy, triturar o vidro e misturar com a comida?
— É uma bela ideia, Phellipe!
O roteiro da carnificina estava definido. Natasha era a única voz dissonante, mas julgava não ter escolha. Seguiram todos em um único carro pelas ruas enfeitadas sob o espírito natalino. Placa encoberta, arroz à grega misturado com pedaços de vidro triturados e uma suculenta carne de carneiro, antes ungida com a própria urina do grupo. Não demorou para avistarem o grupo de moradores de rua, afinal, eram tempos de muita miséria, desemprego e desigualdades.
— Aqui é perfeito. Beco escuro, sem câmeras de segurança… Colocamos todos o gorro do Papai Noel e nem desconfiarão. Certamente brigarão pelas marmitas!
Natasha estava desesperada porque não acreditava que não ultrapassariam o limite das bravatas, mas saiu do carro com os demais pois também não queria permanecer sozinha. Marcel e William tomaram a iniciativa do primeiro contato:
— Olá! Com licença! Feliz natal! Tudo bem com vocês?
Noite fria. Os moradores de rua se aglomeravam ao lado de uma fogueira improvisada. No mínimo estavam ali umas 10 pessoas. Homens e mulheres com 30 anos ou mais. Apesar do certo espanto, porque não era comum a caridade da cidade avançar àquela altura da noite, uma voz rouca respondeu:
— Tudo certo por aqui meu jovem. E por aí?
— Estamos distribuindo comida e gostaríamos de saber se querem um pouco.
Um choro de bebê subitamente ecoou do grupo de moradores. Natasha que até aquele ponto apenas deixava-se arrastar pela força da maioria, não conseguiu conter as lágrimas. Sarah percebeu, cutucou e sussurrou:
— Você quer nos matar?
— Meu filho. A oferta é mais do que bem-vinda. Esses tem sido tempos muito difíceis…
William e Marcel se aproximam e entregam duas sacolas com comida ao interlocutor, que após recebe-las estende a mão:
— Prazer, sou Freddy Krueger, o seu pior pesadelo.
Um dos moradores gargalha logo atrás. Os meninos hesitam em apertar a mão… e após instantes, respondem com gaguejos:
— Eu, so so so sou William.
— Ma ma marcel… esses são Phelippe, Sarah e o irmão dela.
Phelippe toma a palavra:
— Prazer em conhece-lo, Freddy. Agora nós precisamos ir.
— Calma… Por que a pressa? Permita-me ao menos nos apresentar. Este aqui ao meu lado o chamam de Chupa Cabra, os outros ali são Roberto e Carlos. Aquela é Maria e o filhinho dela o chamamos de Jesus – tal como o verdadeiro, ele nasceu em um lugar muito pobre, como podem ver… Aquele deitado de chama Pedro, e do lado dele está o Judas, o traidor. Digam oi aos nossos amigos e amigas.
— Legal. Foi muito bom conhecer vocês, mas realmente pre pre pre precisamos ir.
— Vocês parecem um pouco nervosos… aconteceu alguma coisa?
— É verdade, Judas… Não tem porque o nervosismo. Ficamos lisonjeados pela comida.
— É impressão sua senhor. É que nossos pais nos esperam.
— Menina, por que choras?
***
“O plantio é opcional, mas a colheita é obrigatória” (autor desconhecido).
O que é a vida, senão instantes? Talvez essa tenha sido a pergunta que possa ter ocorrido a Natasha naqueles segundos. O fato é o que rei estava nu, e o macabro plano descoberto. Naquele momento os meninos e meninas perceberam que haviam ido longe demais; que fora da bolha a vida era bem diferente. No mundo real a colheita era obrigatória. Alguns tentaram correr, outros tropeçaram, gritaram, pediram socorro. Tentativas inúteis. Não havia escapatória. Deviam explicações.
— Que p… é essa? Isso é cheiro de urina! Então era isso? Sacanearam com a comida e queriam dar pra gente?
— Na na na não, senhor. Foi tudo um mal-entendido.
O mentor do plano gaguejava. Estava borrado…
— Menina, você não vai parar de chorar? Diz pra gente qual era o plano e liberamos você.
— Ela estava chorando porque a ideia foi dela! E tem mais, ela queria matar vocês. Tem caco de vidro no meio da comida.
— Cale-se, moleque. Não falei com você. Isso é verdade, mocinha?
Natasha estava em choque. O filme da vida passava diante dos seus olhos. Lembrou da mãe, do pai, especialmente da avó, que sempre alertou sobre a escolha dos amigos. Aconselhou inúmeras vezes que só chamasse de “amigo” aquelas pessoas que pudesse confiar a própria vida.
— Senhor, a gente só quer voltar pra casa. Se não quiserem a comida, nós a levamos de volta. Tudo foi um mal-entendido.
— Cala boca! Só existe uma maneira de saber o que realmente estava acontecendo aqui! Sabe qual é?
— Não…
— Vocês todos vão comer a comida que trouxeram pra gente. Algum problema?
— Por favor… não…
— Viu aí, Krueger? Eles queriam nos ferrar! Vamos, enfie uma colher de arroz na boca daquele ali, o mais debochado. William, certo? Coma o teu próprio lixo. Depois este, os dois ali, e por fim, a menina chorona. A noite está apenas começando…