Violar pela língua, resistir pela invenção – Por Ariadne Marinho
“À deriva. E a flexão de um verbo, ‘derivar’. É a partir dessa imprecisão, ou da conjunção de várias imprecisões, que propomos problematizar os atravessamentos que compõem o ser e o devir. Os modos de ver e de estar no mundo”.
Ariadne Marinho é historiadora, pesquisadora e mãe de Dionísio e Tom. Cuidadora da gata-idosa Cavalo de Fogo e da jovem cachorrinha Frau Caramello. Doutora em História pela UFMT.
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Violar pela língua, resistir pela invenção
Já falamos de bell hooks alhures[1]. Agora abordamos o seu pensamento tal como expresso em “Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens”[2], um poderoso excerto traduzido ao português e retirado da obra Teaching to Transgress, de 1994. Nesse breve recorte – que analisamos aqui –, hooks parte do poema “Incêndios de papel em vez de criança”, da poeta estadunidense e feminista, Adrienne Rich (1929-2012), para tratar o lugar/lócus da linguagem nas relações de poder e raça, problematizando e então propondo a ressignificação dos usos linguísticos como exigência e urgência – epistemológica e política – para a alforria daquelas/es historicamente subalternizadas/os. Pela exegese dos versos de Rich, hooks entende as palavras como um dispositivo de resistência e de emergência para uma consciência de classe, instrumento de luta. “Esta é a língua do opressor, no entanto eu preciso dela para falar com você”, parafraseia hooks (HOOKS, 2008 [1994], p. 858).
De acordo com hooks, existe uma vinculação implícita entre as línguas e a dominação. O que nos leva a pensar nas relações degradantes estabelecidas pelo colonizador sobre aquela/e que é colonizada/o. O idioma do outro deve perecer pela imposição da língua dos “civilizados”. O processo civilizador, assim, é um processo etnocêntrico, genocida. Para hooks, a língua inglesa é tanto a representação quanto a expressão da violência, de um agente colonizador que quer suprimir os modos de vida – memórias, cultura, identidade – daquelas/es que escraviza. Por isso, hooks compreende a fala como uma instância de dominação e, por extensão, também de resistências. Ora, afirma, “eu sei que não é a língua inglesa que me fere, mas o que os opressores fazem com ela, como eles a moldam para se tornar um território que limita e define, como eles fazem dela uma arma que pode envergonhar, humilhar, colonizar” (HOOKS, 2008 [1994], p. 858).
bell hooks observa que o ideário do colonizador é atravessado pelo desejo de aniquilar qualquer resistência, de modo a implementar seu projeto político, econômico, social e cultural. E dizimar a língua das/os dominadas/os, arrancando as suas memórias, as possibilidades de pertencimento, e anulando as afetividades associadas aos modos de falar autóctone, é um expediente eficiente de controle, de manutenção servil.
Eu penso agora no pesar de africanos deslocados “sem casa”, forçados a habitarem um mundo onde eles viam pessoas como eles mesmos, sob a mesma pele, a mesma condição, mas que não tinham uma língua compartilhada para falar um com o outro, que precisaram da “língua do opressor”. “Esta é a língua do opressor, no entanto eu preciso dela para falar com você”. Quando imagino o terror de africanos a bordo de navios negreiros, em conjunto para leilões, habitando a desconhecida arquitetura das plantações, eu considero que esse terror se estende além do medo da punição, que isso consiste também na angústia de ouvir uma língua que eles não poderiam compreender. O genuíno som do inglês tinha de apavorar. Eu penso nas pessoas negras se encontrando num espaço longe das culturas e línguas diversas que as distinguiam umas das outras, forçadas pelas circunstâncias a encontrar maneiras para falar umas com as outras em um “novo mundo” onde a negritude ou a escuridão da pele, e não a língua, poderia tornar-se o espaço de ligação. De que modo recordar, evocar esse terror… De que modo descrever o que deve ter sido para os africanos, cujas ligações mais profundas foram forjadas historicamente no espaço da fala compartilhada, serem transportados abruptamente para um mundo onde o verdadeiro som da língua materna não tinha sentido… (HOOKS, 2008 [1994], p. 859-860).
A colonização linguística implicou no massacre e na opressão de vários grupos, notadamente daqueles sequestrados no outro lado do mar-oceano e escravizados nas plantações de uma América em formação. A violação pela língua provocou a reorganizações no funcionamento de povos culturalmente distintos, promoveu o horror, o esquecimento, o silenciamento.
Eu os imagino ouvindo inglês falado como a língua do opressor, no entanto eu os imagino também se dando conta de que essa língua precisaria ser possuída, tomada, reivindicada como um espaço de resistência. Imagino que o momento em que eles perceberam que a língua do opressor, tomada e falada pelas bocas dos colonizados, poderia ser um espaço de ligação foi uma intensa alegria. Nessa percepção estava a compreensão de que a intimidade poderia ser restaurada, de que uma cultura de resistência poderia ser formada de tal maneira que tornaria possível a recuperação do trauma da escravidão. Imagino, então, as pessoas africanas ouvindo pela primeira vez o inglês como “a língua do opressor” e então re-ouvindo-a como um local potencial de resistência (HOOKS, 2008, p. 858).
Entende-se que o inominável processo de agressão, segregação e aniquilamento, de desrespeito contínuo de direitos que o povo negro experimenta desde o início da escravatura, das relações colonialistas – no decorrer de todo o período moderno –, acompanhou a substituição de seus idiomas originários, a adoção de uma língua estranha. E, assim, gerou o apagamento de suas identidades, o desmembramento de suas heranças culturais, seus afetos imemoriais, junto com a domesticação de seus corpos. E isso vale também para os povos ameríndios.
No entanto, avalia hooks, desenvolveu-se aí estratégias de sobrevivência. Com a ressignificação do idioma do opressor por uma língua compartilhada. Conforme hooks, “Necessitando da língua do opressor para falar uns com os outros, eles não obstante também reinventavam, refaziam essa língua de tal modo que ela falaria além das fronteiras da conquista e da dominação” (HOOKS, 2008, p. 859).
Nas bocas de africanos negros no chamado “Novo Mundo”, o inglês foi alterado, transformado, e tornou-se uma fala diferente. O povo negro escravizado pegou pedaços partidos do inglês e fez deles uma contralíngua. Eles colocaram junto suas palavras de tal maneira que o colonizador tivesse de repensar o significado da língua inglesa. Ainda que se tenha tornado comum na cultura contemporânea falar sobre as mensagens de resistência que emergiram na música criada por escravos, particularmente o spiritual, pouco foi dito sobre a construção gramatical das sentenças nessas músicas. Frequentemente, o inglês usado nas músicas refletia o mundo destruído, rompido do escravo. Quando os escravos cantavam “nenhum corpo conhece o problema que eu vejo”, seu uso da expressão “nenhum corpo” [no body] adicionava um significado mais rico do que se eles tivessem usado a expressão “ninguém” [no one], porque era o corpo do escravo que era o local concreto de sofrimento. E ao mesmo tempo que o povo negro liberto cantava o spiritual, eles não mudavam a língua, a estrutura da sentença, de nossos ancestrais. Para cada uso incorreto de palavras, para cada colocação incorreta das palavras, era um espírito de rebelião que reivindicava a língua como um local de resistência. Usar o inglês de uma maneira que rompeu o uso e o significado padrões, de tal modo que o povo branco poderia amiúde não entender a fala negra, fez do inglês muito mais do que a língua do opressor. Existe uma conexão inalterada entre o inglês mal falado do africano deslocado, escravizado e a diferente fala vernácula negra que o povo negro usa hoje. Em ambos os casos, a ruptura do padrão inglês possibilitou e possibilita rebelião e resistência. Por transformar a língua do opressor, fazer uma cultura de resistência, o povo negro criou uma fala íntima que poderia dizer muito mais do que era admissível dentro dos limites do inglês padrão. O poder dessa fala não é simplesmente possibilitar resistência à supremacia branca, mas é também fabricar um espaço para produção cultural alternativa e epistemologias alternativas – diferentes maneiras de pensar e conhecer que foram cruciais para criar uma visão de mundo contra hegemônica. É absolutamente essencial que o poder revolucionário da fala negra vernácula não seja perdido na cultura contemporânea. Esse poder reside na capacidade de o vernáculo negro interpor-se nas fronteiras e limitações do inglês padrão. Na cultura popular negra contemporânea, a música rap tem se tornado um dos espaços onde a fala vernácula negra é usada num estilo que convida a cultura padronizada dominante para escutar – ouvir – e, em algum grau, para ser transformada. Contudo, um dos riscos dessa tentativa de tradução cultural é que isso banalizará a fala vernácula negra. Quando jovens garotos brancos imitam essa fala de uma maneira que dá a entendê-la como a fala daqueles que são estúpidos ou daqueles que estão interessados somente em diversão ou em serem engraçados, então o poder subversivo dessa fala é enfraquecido (HOOKS, 2008, p. 860).
Se o olhar é resistência, fazer-se oposição. E o silêncio é confrontador, ato de pura rebeldia. Reinventar a língua é então comprometer-se com a revolução, com a transformação integral do ordenamento social.
Referências
HOOK, Bell. Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens. Revista: Estudos Feministas, Florianópolis, 16[3]: 424, setembro-dezembro/2008; pp. 857-864.
Notas
[1]Aqui: https://ruidomanifesto.org/bell-hooks-por-ariadne-marinho/
[2]Tradução ao português de Carlianne Paiva Gonçalves, Joana Plaza Pinto e Paula de Almeida Silva. Publicado originalmente como “Language. Teaching New Worlds, New Words”. In: ___________. Teaching to Transgress: Education as Practice of Freedom. New York: Routledge, 1994; pp. 167-175.
Imagem de capa: https://www.saha.org.za/