Voos e reexistências escritas em revoada
Ainda energizadas pelas potências de viver e ser poeta, compartilhadas pela querida Ilza Carla, no primeiro bloco desta entrevista (Leia aqui) trazemos mais um punhado de suas palavras carregadas de poder, afeto e esperanças. Sãos registros da sua (re)existência na lida constante de conciliar caminhos e labutas, mas sem perder o doce perfume da partilha e do amor; esse mesmo de mãe que acolhe mais um.
Conhecer e ler Ilza, se assemelha a um encontro com a senhorinha da rua, sentada em frente à casa proseando; é se deparar com a simplicidade dos diálogos solucionando perguntas que antes pareciam indecifráveis. Ao mesmo tempo, sua escrita atravessa os muros da Universidade e, de dentro pra fora, nos faz perceber que rompemos barreiras limitantes estruturadas por uma ótica patriarcal, a cada pequena conquista, pelo simples fato de ser poeta, mãe, pesquisadora, professora, artista, mulher tendo vez e voz, abrindo alas e convocando outras vozes a ecoarem.
Agora, é o balançar da poesia de Ilza Carla que nos conduz nessa viagem de ver e sentir as palavras rebuliçando, despertando sentidos e memórias, arreliando rebeliões. E se nós também não nos deixarmos levar por essas palavras-mulheres que estimulam a vigilância e, principalmente, a (re)AÇÃO? O que seremos, além de sonhos guardados em gavetas junto às palavras esquecidas nos caderninhos do existir? Reflitamos! E com/pela a arte potente e afetuosa de Ilza, movimentemo-nos, já! “Ladeira acima, todas!”
- Pensando nesses movimentos da própria existência e das palavras, para onde você deseja que vá a sua arte?
IC: Essa pergunta talvez seja a mais difícil de responder porque, quando se trata de futuro, temos de encontrar um equilíbrio entre os sonhos e desejos, que nos movem e nos fazem acordar todos os dias e seguir em frente, e as expectativas que, se muito altas e irrealizáveis, podem nos frustrar. Quanto à minha escrita, confesso que sou modesta, muito talvez porque não tenho conseguido dedicar tempo em sua divulgação, como necessitaria. Cabe a nós também esse papel e, ultimamente, não ando muito motivada para compartilhar poesia nas redes sociais. Tenho a impressão (comprovada pela minha observação) de que as pessoas não têm tido tanto interesse pela poesia, nesse universo das redes sociais. O que tem ganhado atenção (e likes) são outros tipos de publicações. Ainda assim, tenho me surpreendido com os lugares aonde ela tem ido. E ela tem ido mesmo sem mim, o que é maravilhoso, o que significa que a poesia está como deve estar: livre e potente, e não presa a mim.
ER: O que você pensa acerca dos coletivos, confrarias, agrupamentos de mulheres artistas, das mais variadas linguagens, que investem em pesquisa/criação/produção/publicação coletiva, exclusivamente de mulheres? Você conhece algum(ns) desses coletivos de mulheres? Quais?
IC: Esses coletivos e agrupamentos são importantes e necessários. Eu mesma sou fruto de um deles. Até 2015, meus textos eram “engavetados”, como disse. Até o dia em que publiquei um poema numa rede social e uma professora da UEFS e também escritora, Rita Queiroz, leu, gostou e me convidou para integrar um grupo de escritoras baianas, à época recém-criado, a Confraria Poética Feminina. A partir daí, integrei a primeira antologia, intitulada Confraria Poética Feminina – volume 1, cuja publicação foi um marco capaz de me impulsionar a escrever cada vez mais. O gesto de publicar tornou a experiência da escrita mais concreta, inclusive para os mais próximos a mim, os quais nem sabiam que eu escrevia. Daí vieram outros tantos projetos, participação em feiras e saraus e o incentivo das confreiras para que publicasse meu primeiro livro. Por isso que sempre digo que considero a Confraria Poética o útero da minha poesia. Embora ela já existisse, foi graças ao coletivo que ela pode crescer e nascer, efetivamente.
Também tive a oportunidade de participar de outros projetos idealizados por mulheres, como 1º Encontro de autoras baianas, em 2021, coordenado pela escritora baiana Clarissa Macedo, o InterpoéticAS, um lindo projeto premiado pelo programa Aldir Blanc Bahia que permitiu o Encontro literário virtual de mulheres poetas de vários Territórios de Identidade da Bahia. Na ocasião, fiz parte de um dos episódios que foi ao ar pelo Youtube (Assista aqui), representando o semiárido. Este é, aliás, um dos importantes projetos dos quais SertãoSol e Pók Ribeiro fazem parte e que proporcionam maior visibilidade ao trabalho de artistas e escritoras de nossa região. Como veem, enquanto poeta, devo muito do que sou e do que consegui produzir e divulgar a esses movimentos e, por isso, sempre que posso, também faço o mesmo.
ER: Considerando seus estudos na área de Crítica Cultural e todo o seu processo criativo, como você analisa os efeitos do patriarcado sobre a existência das mulheres e suas produções artísticas, principalmente daquelas que se desdobram entre a maternidade, o trabalho, os estudos e as artes?
IC: Essa é o que poderíamos chamar de uma pergunta que daria um livro ou uma tese, mas vou me arriscar a pontuar algumas questões que estão diretamente atreladas às minhas vivências, as quais, aliás, não são exclusivamente minhas, dizem respeito à muitas mulheres. Em meados de 2021, em plena pandemia, resolvi me inscrever no processo de seleção para o doutorado. Com o suporte essencial de meu esposo (companheiro e incentivador inequívoco de tudo o que faço), fui aprovada. Quinze dias depois, descobri que estava grávida do meu terceiro filho, o Heitor, maior alegria de nossa casa, mas, racionalmente, sabia que seria bem difícil conciliar a maternidade e o doutorado, cujo desafio eu não estava certa de querer enfrentar, especialmente porque estávamos todos ainda tentando sobreviver aos efeitos da pandemia, muito mais que meramente físicos. Mas, mais uma vez, meu esposo Teomar não me deixou desistir. Porém, nem ele sabia que seria tão difícil, como tem sido. Eu diria que a maternidade, de algum modo, nos imprime uma pausa. Não há como negar, não dá pra romantizar. Ser mãe é priorizar o filho e, se sobrar tempo, dedicar-se a nossos projetos. Não significa que não os façamos, mas não no tempo que gostaríamos. E a sociedade – a universidade, o trabalho, as pessoas – nem sempre entendem isso. É como se nós fôssemos obrigadas a escolher. Ser mãe ou ser pesquisadora. Ser mãe ou ser escritora. Na verdade, queremos poder escolher e isso é ótimo. Sermos ou não mães, sermos ou não estudantes, escritoras etc. Mas, por que não podemos ser os dois? E mesmo que não nos digam que não podemos, sentimos o peso da cobrança, a ponto de pensarmos: será que vale mesmo a pena? Enfim, a maternidade é para mim uma escolha, das melhores e mais acertadas que fiz na vida e acredito ter maturidade para entender que cada tempo exige uma dedicação. Agora, Heitor com pouco mais de um ano, está desbravando o mundo com seus próprios pés, mas precisa de minhas mãos para isso (rsrs), por isso, estar ao computador, lendo ou escrevendo, pode ser uma tarefa hercúlea. E eu sei que, logo, poderei “despausar” a minha vida. Já faz um tempo que não me dedico a escrita literária, porém tenho escrito as três mais lindas poesias: Paulo, Pedro e Heitor.
No que se refere à pesquisa que estou desenvolvendo dentro do doutorado em Crítica Cultural, situada no histórico massacre da comunidade de Belo Monte/Canudos, cujo tema já me acompanha desde a graduação, como, agora, especificamente, tenho me dedicado a mapear as produções literárias contemporâneas de poetas radicados na região que escrevem sobre esse fato, por acreditar que essa poesia é potente tanto para não deixar morrer essa história quanto também para alimentar o desejo de lutar contra os massacres que ainda hoje acontecem no nosso sertão, tenho ido em busca de produções de poetas mulheres, até porque, enquanto mulher e poeta, eu sei que se muito facilmente nos deparamos com uma lista de poetas homens. Então, se não buscar, conscientemente, produções de mulheres, acaba acontecendo um ciclo que se repete sempre, como se somente os homens tivessem escrito sobre nosso sertão e nossa história. Mas tem sido um desafio encontrar essas mulheres que escrevem sobre Canudos, por razões já apontadas aqui, mas ao mesmo tempo tão complexas que pretendo que a minha pesquisa me ajude a pensar.
ER: Como mulher que faz e vive Arte, Ciência e Maternidade, quais seus desejos e planos para os dias vindouros?
IC: Particularmente, desejo também criar um grupo com as escritoras de nossa região, numa espécie de coletivo que nos aproxime, nos estimule e nos encoraje a produzir arte e literatura. Nesse momento, as demandas da vida pessoal e acadêmica não me permitem realizar esse sonho, mas tenho fé de que, logo, consiga.
Também diria que nutro um desejo mais utópico, não no sentido de irrealizável, mas como desejo mesmo que me move, inclusive, à minha escrita: de que, um dia (e que esse dia não tarde), não tenhamos de ver noticiados casos de violência contra mulheres, sejam eles de qualquer tipo. Ponho minha esperança no futuro e para isso educo meus três filhos homens.
ER: Há alguma questão sobre a qual você gostaria de falar nessa entrevista, mas não foi perguntada? Algum verso para espalhar? Se sim, compartilhe conosco.
IC: Na verdade, sim. Gostaria de deixar meu agradecimento e meu abraço afetuoso e sertanejo pra essas três mulheres e poetas que me fizerem essa lindeza de convite pra essa entrevista, especialmente a Pók Ribeiro, com quem fiz contato. Acreditem: vocês me fizeram um bem danado, porque as perguntas me puxaram de volta pra seara da poesia, que andava um tanto adormecida, pelas razões que, inevitavelmente, já mencionei. Também gostaria de compartilhar mais um poema, ainda inédito, em homenagem a todas as mulheres que se esforçam cotidianamente pra subir as ladeiras de suas existências. Pode parecer que não, mas muitas, principalmente nos rincões do nosso sertão, não conseguem se livrar dos pesos que a sociedade machista lhes impõe. Por isso é tão importante que peguemos nas mãos umas das outras, como estão fazendo Pók, SertãoSol e Ádila, ao darem voz a mulheres artistas e escritoras do semiárido. Esta é uma das maneiras de nos ajudarmos a alcançar nossas “moradas”.
E Ilza arremata sua participação com poesia:
Ladeira acima, todas!
Meu corpo labuta
subindo a ladeira
de minha reexistência.
Sobre a cabeça,
lata d'água carregada de
Isso, pode!
Isso, não pode!
Dela, jorram o sangue
dos nossos corpos violentados
e os gemidos de nossas vozes silenciadas.
Não subo essa ladeira sozinha:
comigo vão muitas, como eu, cansadas,
mas de mãos dadas.
Nossas costas
reclamam o peso do mundo
que trazemos escorado em nossas ancas.
Choram nossos mundos-meninos,
cansados dos sacolejos
que a vida dá.
Em nosso seio,
alimentamos a vida
maternamos a existência.
Sem nós,
tudo é vazio e silêncio.
No topo da ladeira,
cada uma avista a morada
que deseja alcançar.
Eu vejo a minha:
sem cercas,
com quintal de terra batida
e um pé de umbuzeiro,
como sempre quis.
Lá, semearemos nossas memórias,
celebraremos nossa ancestralidade,
fincaremos nossas raízes,
que crescerão profundas
para sobrevivermos
aos tempos de estiagem.
É com essa força poética e criadora de Ilza Carla que anunciamos um recesso em nossa coluna, esperando que as poesias-orações-manifestos aqui lançados, ao longo desses meses, rebrotem potentes e que, logo mais, possamos voltar para as colheitas. Gratidão a você que nos leu e/ou partilhou vivências conosco.
Até mais.
Pók Ribeiro
SertaoSol
Ádila Madança