Xô, xô, mbora! – Por Hugo Lorenzetti Neto
Na coluna mensal “Jerônima” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), a bonita Hugo Lorenzetti Neto nos traz – no melhor estilo eu-miss-desejo-a-paz-mundial – traduções de autoras e autores de diversas línguas e partes do globo. Diplomacia com plissado rosê. Regras: 1) cada coluna é um baile temática, os textos traduzidos têm um tema em comum; 2) uma espécie de ensaio inédito do colunista amarra sempre as traduções. A coluna irá ao ar sempre na última quinta-feira do mês.
Hugo Lorenzetti Neto é diplomata e tradutor, e atuou quase toda sua carreira, de 2006 até o momento, na área cultural do Itamaraty. Atualmente lotado no escritório do Ministério em Recife, oferece oficinas de escrita e realiza clubes de leitura, além de divulgar poesia em seu projeto O Caderno Rosa (@ocadernorosa, no Instagram).
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Xô, xô, mbora!
Primeiro, escuta aqui esta canção, na performance do Ndlovu Youth Choir:
O Ndlovu Youth Choir foi formado em 2009, na província do Limpopo, lindeira com o Zimbábue, nasceu em um projeto social para educação de crianças e jovens de origem desprivilegiada. Em 2019, um vídeo do grupo cantando uma canção de Ed Sheeran acompanhado pelo flautista ganhador do Grammy Wouter Kellerman viralizou. O coral foi convidado a participar da seleção para o reality show America’s Got Talent – e seguiu até as finais. Depois disso, o grupo gravou um álbum por ano até 2022. Ed Sheeran e America’s Got Talent certamente não pertencem às utopias de igualdade social, mas dentro do possível já dentro do fim do mundo (porque o capitalismo continua), é bom para a moçadinha bonita e animada do vídeo ter acesso a recursos materiais para dar continuidade e expandir seu trabalho – não adianta não jogar o jogo até a revolução que não chega nunca chegar.
No vídeo, o Ndlovu Youth Choir canta “Shosholoza” para animar o time nacional de rugby, os Springboks ou Bokke (como a legenda diz: Go, Bokke!). A canção havia sido adotada pelo time – também pela força das gravadoras e dos organizadores de grandes eventos – em 1995, para a Copa do Mundo de Rugby. Antes disso, já haviam aparecido diversas gravações, às vezes antes por artistas negros e brancos, sul-africanos e estrangeiros. A canção é considerada um hino alternativo do país por alguns entusiastas encontráveis na internet.
Mas há uma gravação que eu quero mencionar é a do Ladysmith Black Mambazo, que você pode ouvir aqui:
Joseph Shabalala, fundador e líder do coral, e arranjador dessa gravação de “Shosholoza”, faleceu em 2020 em Pretória. Foi homenageado pelo governo da República da África do Sul, com uma celebração na língua xhosa: “Ulale ngoxolo Tata ugqatso lwakho ulufezile,” que, segundo o site do próprio grupo se traduz para o inglês como “Rest in peace, father, your race is complete.” Descanse em paz, tua corrida (luta, teu corre, como se diz hoje pelas cidades brasileiras) está terminada. O Economic Freedom Fighters, partido dissidente marxista-leninista e pan-africanista do African National Congress Party, aprofundou a homenagem e declarou que a música do Ladysmith Black Mambazo dialoga com a realidade das normas e tradições negras e ilumina para o mundo as condições de vida dos sul-africanos negros para o mundo. O grupo ficou famoso para o mundo do capital depois de gravar com Paul Simon em 1986 duas faixas do álbum “Graceland,” e participou de uma série de outras gravações – e uma participação no filme “Moonwalker,” de Michael Jackson.
Dentro da África do Sul, a história do Ladysmith Black Mambazo é estruturante tanto para o país – como notou o EFF na sua manifestação de pesar – quanto para a circulação transacional de cultura e arte dos povos negros da África do Sul. Em 1964, Joseph Shabalala, após deixar o trabalho rural pelo trabalho na fábrica, funda um grupo vocal que se especializa nos gêneros a cappella da África Meridional: Ladysmith, o nome da cidade de Shabalala, localizada a três horas de viagem de Durban; Black, referência a um grande touro criado na região; Mambazo, uma palavra zulu para machado – um grupo local, forte e cortante, que acabou banido de concursos por ganhar demais, segundo conta a biografia no site oficial do coral. O nome do grupo ainda guarda em si um machado negro, black mambazo: há um corte na realidade causado por um instrumento negro – a voz negra.
A proposta do grupo sempre foi a de preservar a tradição musical, e “Shosholoza” é um exemplo de gênero de que o grupo emprestou muito: a isicathamiya. O gênero é uma confluência de outros gêneros e seus procedimentos, suas práticas e formas de circulação. Ele nasce das transformações na estrutura sociocultural da África do Sul depois da Primeira Guerra: migração laboral, empobrecimento das comunidades rurais e êxodo rural, e a conformação urbana em torno da industrialização. A cena musical urbana e de classe média, sobretudo a de vaudeville, que produzia música que traziam em sua forma o racismo da sociedade segregacionista ao imitar – e, portanto, reduzir e empobrecer musicalmente – ritmos africanos, chocou-se com a chegada da música trazida pelos migrantes rurais, e desse embate surgem novos gêneros, com novos procedimentos e práticas. A isicathamiya se forma da influência, dos empréstimos e das limitações formais colocadas por ritmos como o isikhunzi, que era esse conjunto de ritmos adaptados pela classe média; o mbumbe, que era música rural para casamentos; o ngoma, uma dança ligeira da região de KwaZulu-Natal; e os hinos cristãos trazidos por europeus de origens diversas.
Em entrevista concedida a Veit Erlmann, acadêmico alemão radicado nos Estados Unidos e interessado na pesquisa da teoria da composição baseada naquilo que é dito pelas pessoas que fazem a música, Joseph Shabalala comenta as mediações que fez para construir os procedimentos que o levariam a organizar o Ladysmith Black Mambazo, uma década depois de suas primeiras experiências com canto coral:
Singing, the old style, was a style that was narrative. Its beauty was in the fact that when you were familiar with the story told in the narrative, you would recognize it. But when it came to the high range singing, that is where the music to me appeared so queer and difficult that I felt I couldn’t do it. But since I was a person who really loved to sing, I thought that if I really wanted to pursue singing, I would contrive a different style of singing, quite opposed to this.
Cantar, o estilo antigo, era um estilo que era narrativo. Sua beleza estava no fato de que, quando a história contada na narrativa era familiar, você a reconheceria. Mas quando se tratava do canto agudo, era aí que a música para mim parecia tão esquisita e difícil que eu sentia que não conseguiria. Mas como eu era uma pessoa que gostava muito de cantar, pensei que se realmente quisesse seguir cantando, inventaria um estilo diferente de cantar, bem oposto a esse.
Na entrevista, Shabalala continua contando sua experiência com o primeiro coral, todo formado de pessoas mais velhas que ele, ainda nos anos 1950. O estilo agudo e branqueado do canto coral era uma ponta do incômodo. A outra era comunicar a um grupo de pessoas de mais idade o que ele percebia de harmonia.
Now, when I came to them, as a person who is used to tuning guitar strings before playing, I discovered that their singing was not congruent, that is, harmonically speaking. Then I said: “Gentlemen, I think this voice should sing like this, and the other voice the other way round.” Meaning that the voice parts were not right, so I had to put them right by changing them to effect better harmony. But it posed prob- lems for me to teach older people, and what I was teaching them appeared difficult to them, they couldn’t grasp it with ease. Then it was difficult, and I found that I couldn’t change their singing. Then I left them just like that.
But I was not in a jovial mood; such that when one day I attended a concert with them, I said after listening to other groups: “Gentlemen, let’s not sing, because we are not ready.” But they insisted to sing since they couldn’t bear that they were not right. They forced me to sing, but I dodged them and hid myself outside. By then I was singing bass. People laughed at them when they were performing and they had to stop and go outside. When I met them outside I reminded them that I had warned them that our singing was not yet ripe. That’s when they realized it. We must also take into consideration that it was a farm setting and the standard of music was not high.
Então, quando me acheguei a eles, como alguém acostumado a afinar as cordas do violão antes de tocar, descobri que o canto deles não era congruente, ou seja, harmonicamente falando. Então eu disse: “Senhores, acho que esta voz deveria cantar assim, e a outra voz assado.” O que significa que as partes da voz não estavam corretas, então tive que corrigi-las, alterando-as para obter uma harmonia melhor. Mas para mim era difícil ensinar pessoas mais velhas, e o que eu ensinava parecia difícil para eles, eles não conseguiam entender com facilidade. Então foi difícil e descobri que não podia mudar o canto deles. Então eu os deixei assim.
Mas eu não estava lá muito de bom humor; tanto que quando um dia assisti a um concerto com eles, disse depois de ouvir outros grupos: “Senhores, não vamos cantar, porque não estamos prontos.” Mas eles insistiram em cantar porque não suportavam que não estivessem certos. Eles me forçaram a cantar, mas eu me esquivei e me escondi do lado de fora. Até então eu estava cantando como baixo. As pessoas riram deles quando estavam se apresentando e eles tiveram que parar e sair. Quando os encontrei do lado de fora, lembrei-lhes que os havia avisado de que nosso canto ainda não estava maduro. Foi quando eles perceberam. Também devemos levar em consideração que era um contexto de fazenda e o padrão da música não era elevado.
Há de um lado a inconformidade com o som estrangeiro e branco dos corais. De outro, o respeito parcial a um protocolo, e estratégias para comunicar isso aos seus – a clara compreensão das dinâmicas sociais envolvidas nas transformações da vida naquele contexto específico e o modo como elas criavam tensões na forma artística. No processo de urbanização e industrialização da África do Sul, os corais e as agremiações esportivas, além das associações proto-sindicais e sindicais, eram organizações fundadas em parentesco ou afinidade cultural. Assim, além de acolhimento e solidariedade, essas associações mantinham vivos protocolos de senioridade que dificultavam que alguém como Shabalala, que compreendia melhor que seus superiores aspectos da forma do canto, falasse. E os próprios padrões do canto coral – a colonialidade da forma – não escapavam de sua percepção. O embate duplo Shabalala diz a Erlmann que resolve assim:
Then on December 31, 1959, or we can say, January 1960, 1 first came to Durban. I found a group called Highlanders. My father’s younger brother was in that group. This is where and when I discovered that when you sit down and arrange music critically, it sounds good. But I also saw that you need people who are going to listen to you. Then I thought that people who could listen to me would be people who are younger than I am. Then I decided that when I go home I would take my younger brothers and teach them what I feel inside me and see how it goes. Then at Christmas time in 1960 I gathered my brothers. They listened to me and I gave them what I want and feel, which is what invokes me every time I sing. The boys blended well, thereafter, you will remember that where we lived was at the Boers’ farm, plaas. You live there and work on the plaas. Singing was just to while away time, to remove the tedium of work, and it happened once or twice a year, during Christmas or an oc- casional concert. So it wasn’t a frequent event such that we would only practice when there was going to be a concert. When it was going to be Christmas season, we would start practising shortly before Christmas.
Então, em 31 de dezembro de 1959, quer dizer, em janeiro de 1960, vim pela primeira vez a Durban. Encontrei um grupo chamado Highlanders. O irmão mais novo do meu pai estava nesse grupo. Foi onde e quando descobri que, quando você se senta e faz um arranjo criticamente, a música soa bem. Mas também vi que você precisa de pessoas que te ouçam. Então pensei que as pessoas que poderiam me ouvir seriam pessoas mais jovens do que eu. Então decidi que quando fosse para casa pegaria meus irmãos mais novos e ensinaria a eles o que sinto dentro de mim e veria no que daria. Então, na época do Natal de 1960, reuni meus irmãos. Eles me ouviram, e mostrei a eles o que quero e sinto, que é o que me invoca sempre que canto. Os meninos se arranjaram bem, depois disso, você vai se lembrar que nós morávamos na fazenda dos bôeres, a plaas. Você mora e trabalha na plaas. Cantar era só para passar o tempo, para quebrar o tédio do trabalho, e acontecia uma ou duas vezes por ano, no Natal ou num concerto ocasional. Então não era um evento tão frequente que a gente só ensaiava quando ia ter show. Quando chegava a época do Natal, começávamos a praticar pouco antes do Natal.
Joseph Shabalala reorganiza o mundo e a vida a partir de suas limitações e possibilidades, para fazer o canto aparecer e invocar sentimentos – quebra como pode o rigor da proletarização, abre portas e caminhos que, se não capazes eles mesmos da revolução e da destruição das opressões, apresentam sonhos e utopias – e um coral pode ser uma maquete da utopia. Só quebrar o tédio do trabalho, ou ritmar esse trabalho para que ele doa menos não é pouca coisa, de um ponto de vista material. É a vida se mexendo para o lado oposto da opressão, da alienação, da reificação. É o machado preto cortando a precariedade da existência – ainda que isso no fim das contas seja uma vitória efêmera. É efêmera, mas a forma fica, o sonho fica, a utopia se desenha.
Voltando para a canção “Shosholoza,” traduzi-la é mais um exercício poético, que quero fazer como presente de fim de ano para você. A letra não tem uma língua só de origem. Pelo menos dois idiomas zulus que já incorporaram vocábulos do inglês. Juntando tentativas aqui e ali que encontrei no buraco do Google, passei por um processo que vou colocar aqui, para depois mostrar a minha versão – teu presente de amigo secreto (porque eu não sei quem você é; só imagino de vez em quando).
A letra:
Shosholoza
Kulezo ntaba
Stimela siphume South Africa
Wen’ uyabaleka
Kulezo ntaba
Stimela siphume South Africa
Pronto. Vou digitar aqui pra você fazer controlcê se quiser. É teu presente.
Xô, xô, mbora
dessas montanhas
no trem que vem das minas de África
Estamos partindo
dessas montanhas
no trem que vem das minas de África
E como eu estou “in a jovial mood”, graças a Joseph Shabalala, vou cantar pra você:
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Teu presente não é só esse. Estamos dividindo um: estamos você e eu e nosso país entrando num trem que vai saindo das minas, que vai saindo do inferno. É um trem, é um caminho, vai ter o que trilhar e muita coisa pode acontecer. Mas agora vai ser Ano Novo e Lula vai subir a rampa. Nossa saída dos túneis de sofrimento começa com uma festa, cheia de gente feliz.
Nelson Mandela conhecia o Ladysmith Black Mambazo. Cantaram na primeira festa de aniversário dele fora da prisão. O coral o acompanhou na cerimônia do Nobel da Paz em 1993. Em sua autobiografia, “The long walk to freedom”, Mandela fala de “Shosholoza:”
For a number of weeks our two groups sang as we worked, adding songs and changing lyrics. Our repertoire increased, and we were soon singing overt political songs, such as “Amajoni,” a song about guerrilla soldiers, the title of which was a corruption of the English slang word for soldier, Johnny; and “Tshotsholoza,” a song that compares the struggle to the motion of an oncoming train. (If you say the title over and over, it mimics the sound of the train.) We sang a song about the Freedom Charter, and another about the Transkei, whose lyrics said, “There are two roads, one road is the Matanzima road, and one road is the Mandela road, which one will you take?”
The singing made the work lighter. A few of the fellows had extraordinary voices, and I often felt like putting my pick down and simply listening. The gang members were no competition for us; they soon became quiet while we continued singing. But one of the warders was fluent in Xhosa and understood the content of our songs, and we were soon ordered to stop singing. (Whistling was also banned.) From that day on we worked in silence.
Por muitas semanas, nossos dois grupos cantaram enquanto trabalhávamos, acrescentando canções e mudando as letras. Nosso repertório aumentou e logo cantávamos canções abertamente políticas, como “Amajoni”, uma canção sobre soldados guerrilheiros, cujo título era uma corruptela da gíria inglesa para soldado, Johnny; e “Tshotsholoza”, uma canção que compara a luta ao movimento de um trem se aproximando. (Se você repetir o título várias vezes, ele imita o som do trem.) Cantamos uma música sobre a Carta da Liberdade e outra sobre o Transkei, cuja letra dizia: “Existem duas estradas, uma estrada é a estrada de Matanzima, e uma estrada é a estrada de Mandela, qual você vai pegar?”
O canto deixava o trabalho mais leve. Alguns dos sujeitos tinham vozes extraordinárias, e muitas vezes tive vontade de largar minha picareta e simplesmente ouvir. Os membros da gangue não eram concorrência para nós; eles logo ficaram quietos enquanto continuávamos cantando. Mas um dos guardas era fluente em xhosa e entendia o conteúdo de nossas canções, e logo mandaram que parássemos de cantar. (Assobiar também foi proibido.) Daquele dia em diante, trabalhamos em silêncio.
E um dia e muita luta depois, ele saiu. Não sei se você se lembra do vídeo. Nelson Mandela caminhando para fora da prisão de Robben Island, uma das imagens mais dignas que já vi na vida. Não só eu acho isso, nem só você se você concorda comigo:
When I was among the crowd I raised my right fist and there was a roar. I had not been able to do that for twenty-seven years and it gave me a surge of strength and joy. We stayed among the crowd for only a few minutes before jumping back into the car for the drive to Cape Town. Although I was pleased to have such a reception, I was greatly vexed by the fact that I did not have a chance to say good-bye to the prison staff. As I finally walked through those gates to enter a car on the other side, I felt — even at the age of seventy-one — that my life was beginning anew. My ten thousand days of imprisonment were over.
Quando eu estava no meio da multidão, levantei meu punho direito e houve um estrondo. Eu não pude fazer isso por vinte e sete anos, e isso me trouxe uma onda de força e alegria. Ficamos no meio da multidão por apenas alguns minutos antes de voltarmos para o carro e partirmos para a Cidade do Cabo. Embora eu estivesse feliz por ter tal recepção, fiquei muito chateado pelo fato de não ter tido a chance de me despedir dos funcionários da prisão. Quando finalmente passei por aqueles portões para entrar em um carro do outro lado, senti – mesmo aos setenta e um anos – que minha vida estava começando de novo. Meus dez mil dias de prisão terminaram.
E se você concorda comigo, a virada do ano tem esse peso. Estamos no trem, você, todo mundo e eu, e nos afastamos do inferno. Agora é festa e depois da festa a gente continua, e vai vendo as minas e as montanhas se afastarem. Xô, xô, mbora.
E feliz, mas bem feliz mesmo: um feliz Ano Novo.