Coluna “Sonora” (29.12)
Na coluna mensal “Sonora” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Aline Wendpap escreve sobre cinema e audiovisual, dedicando-se principalmente a tessitura de textos críticos, com ênfase na produção mato-grossense, nacional ou ainda latino-americana. O título da coluna visa brincar com a palavra, que tanto é ruído, quanto pode ser uma conversa ou um som bacana. Não deixa de ser uma homenagem ao som, característica vigorosa do cinema, além de se parecer foneticamente com Serena, nome de sua bebê, que ainda vai nascer. A coluna irá ao ar sempre no último domingo do mês.
Aline Wendpap é cuiabana “de tchapa e cruz”, nascida em 1983. Primeira Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pelo PPGECCO da UFMT, Mestre em Educação pela mesma Universidade, Bacharel em Comunicação Social – Habilitação: Radialismo (UFMT), integrou o Parágrafo Cerrado, coletivo dedicado a leituras de cenas de espetáculos. É autora do livro “A Televisão sob olhar das crianças cuiabanas” (2008, EdUFMT).
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Bacurau e a democratização do acesso ao cinema em Mato Grosso e no Brasil
Para encerrar este ano e abrir esta coluna, que tenho a honra de apresentar a convite do Ruído Manifesto, resolvi fazer um entrecruzamento entre Bacurau, filme brasileiro sensação dos últimos tempos, e a questão sobre “democratização do acesso ao cinema no Brasil”, que perturbou a cabeça dos jovens que prestaram o ENEM 2019.
Provavelmente o filme mais comentado do cinema brasileiro recente, Bacurau é uma obra que não se esgota, nem no primeiro, nem no décimo, quiçá, no centésimo texto que se escreva a seu respeito. Por isso me arrisco, a também traçar uma leitura sobre os aspectos que mais me chamaram atenção neste filme, o qual já pode ser considerado um marco da história do cinema brasileiro.
Um dos motivos deste estardalhaço tem a ver com o momento histórico e político em que o filme foi lançado. Simbolicamente durante o primeiro ano de um governo, que está bem caracterizado nas linhas e entrelinhas da narrativa. Que, aliás, começa com tema de abertura “Não Identificado” de Gal Costa, o que de certa forma alivia a tensão de quem, assim como eu, aguardava cenas fortes desde o primeiro instante, ao mesmo tempo que dá pistas do que iremos ver a seguir. As estrelas, que me remeteram as icônicas aberturas de Star Wars, parecem querer nos dizer sobre algo muito, muito distante, lá no espaço sideral. Numa possível primeira alegoria da distância geográfica e figurada que separa o nordeste brasileiro das outras regiões do país.
Subitamente somos trazidos de volta à Terra e estamos dentro de um caminhão, ouvindo um papo meio estranho à princípio, mas que aos poucos nos apresenta a dimensão politizada dos cineastas (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) e dos personagens, quando, por exemplo, a câmera direciona nosso olhar para uma escola abandonada e em ruínas, no meio da estrada. Ou ainda quando o motorista Erivaldo (Rubens S. Santos) e Teresa (Bárbara Colen) comentam sobre Lunga (Silvero Pereira) e me vejo intrigada, pois ora se referem ao personagem como ele, outras vezes como ela, demonstrando que para lutar pode-se abrir mão de rótulos.
Como já mencionado por alguns críticos há duas formas de se ver o filme, uma é achar que nada é uma metáfora e a outra achar que tudo é uma metáfora. Confesso que sigo pelo segundo caminho, pois há tanta coisa em segundo e terceiro planos, que mesmo não havendo intenção dos realizadores, muitas leituras são possíveis de serem feitas. O filme é intrigante e interessante não somente pelo aspecto narrativo, mas possui uma profunda riqueza técnica, que o torna ainda mais denso. Vide o exemplo da cena em que Teresa (Bárbara Colen) entra no quarto para se despedir da avó dona Carmelita e um flair de luz entra pelo vão das telhas iluminando de maneira singela e ao mesmo tempo sublime a morta, como se representasse a luz que a personagem incidia sobre a região, mas que mesmo com sua morte não se apagou. Em outro momento a câmera que sobe aos poucos desvelando o deserto das ruas de Bacurau, bem como o prefeito Tony Jr. (Thardelly Lima) sozinho e isolado no centro do povoado, nos diz sobre a sapiência do povo, que desde o início entende que, a melhor saída é sem dúvida a união.
União esta que se encontra em falta no mercado brasileiro, já que a grande maioria, infelizmente, ainda permanece olhando para seu próprio umbigo, assim como o casal de motoqueiros do Sudeste, que tem um fim nada acalentador. Aliás, as observações sobre Sudeste e Nordeste nos oferece um dos ganchos possíveis para a reflexão sobre “Democratização do acesso ao cinema no Brasil”.
Tal questão pode ser tratada a partir de, no mínimo, dois aspectos: o primeiro seria o acesso às salas e às produções, ou seja, a questão da difusão; enquanto o segundo estaria mais ligado ao envolvimento e desenvolvimento da produção, ou seja, quem produz. Barbara Demerov, crítica do site AdoroCinema, faz alguns apontamentos interessantes a esse respeito. De acordo com ela, em um ano como 2019, época em que o Brasil passou a sofrer com censura na Ancine, corte de verbas de produções audiovisuais e até ameaças com base em falta de informação, o tema da redação do Enem se mostra necessário para mostrar a todos que a democratização é uma palavra que deveria ser falada em voz alta mais vezes.
Concordo com suas ponderações também, quando ela diz que “o alcance da democracia está muito fraco, especialmente no que se diz respeito ao cinema”, já que apenas 17% da população frequenta as salas de cinema no país, diga-se de passagem, concentradas nas maiores cidades e num baixo número em regiões, especialmente nas Sudeste e Sul.
Aqui em Mato Grosso temos várias iniciativas que visam democratizar o acesso à produção audiovisual e cinematográfica, como nos informa a matéria de Lidiane Barros [1]. No entanto, temos pouquíssimas salas de cinema [2], estando a maioria concentrada nos shoppings centers ou espaços comerciais. O que dificulta o contato da população tanto com produções nacionais, quanto regionais.
Se por um lado as iniciativas, principalmente a atividade cineclubista – que atualmente vem se organizando através da REC (Rede Cineclubista de Mato Grosso), rede que tem como um de seus objetivos aproximar novos públicos dos filmes produzidos no Estado, bem como fortalecer outros canais de acesso à produção audiovisual que não chega ao público por vias como a televisão, portais de conteúdo da internet e salas de cinema comercial – atuam como agentes democratizantes de acesso, a disparidade do mercado ainda é um fator de dispersão e afastamento do público.
Outra coisa que perpassa a discussão, ainda que tangencialmente, é a questão do gosto, ou o que as pessoas querem/gostam de ver. Pois ainda que tenhamos várias maneiras de acessar a produção nacional e até mesmo a regional, através de plataformas como a KININ, o grande público não está “acostumado” com este tipo de produção, uma vez que, na maioria das vezes, seu maior contato com o cinema é através da produção hollywoodiana, e/ou, no caso de produções nacionais, algumas da Globo Filmes. Por isso seria importante, como menciona Diego Baraldi, “esse contato com outros filmes e com outras relações que surgem através da prática cineclubista”, para que o público perca o ranço às produções nacionais, regionais ou que sigam uma lógica diferente da grande produção comercial.
Assim, Bacurau ou produções de resistência, como esta, passam a ser tão importantes, emblemáticas e simbólicas. Porque começam a dialogar com o grande público (pois mesmo diante de tanta profundidade, o filme não deixa de ter leveza e fluidez) e lhes passa o recado de que há muito mais a ser explorado na produção cinematográfica e audiovisual brasileira, do que supõe a vã filosofia burguesa.
[1] https://olivre.com.br/acesso-ao-cinema-conheca-12-iniciativas-que-promovem-a-telona-em-mt
[2 ] https://olivre.com.br/redacao-do-enem-apenas-dez-cidades-de-mato-grosso-tem-cinema