O Japão no feminino revela poetas clássicas – Por Marilia Kubota
Na coluna quizenal “Outras faces”, Marilia Kubota publica resenhas jornalísticas sobre obras de autoras e autores independentes e da grande literatura, destacando escritos de mulheres não-brancas e de autoras e autores da diversidade étnica e sexual. Desta vez, os livros resenhados são O Japão no Feminino – Tanka séculos IX a XI e O Japão no Feminino – Haiku, Séculos XVII a XX (Assírio & Alvim, 2007), com organização e tradução de Luísa Freire.
Marilia Kubota é poeta e jornalista, nascida no Paraná. Autora dos livros de poesia Diário da vertigem (Patuá, 2015), micropolis (Lumme, 2014) e Esperando as Bárbaras (Blanche, 2012) e organizadora das antologias Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco (Quintal, 2018), Blasfêmeas: Mulheres de palavra (Casa Verde, 2016) e Retratos japoneses no Brasil (Annablume, 2010). É Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Em 2020, lança seu primeiro livro de crônicas, Eu também sou brasileira, pela Editora Lavra.
A imagem destacada na coluna é de autoria de Carlos Dala Stella.
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O Japão no feminino revela poetas clássicas
Em O Japão no Feminino, Luísa Freire investiga a poesia de mulheres japonesas
O Japão no Feminino – Tanka séculos IX a XI e O Japão no Feminino – Haiku, Séculos XVII a XX (Assírio & Alvim, 2007) é um estudo da pesquisadora portuguesa Luísa Freire, sobre a poesia escrita por mulheres no Japão no período clássico. Luisa faz suas versões de poemas para o português lusitano, de duas traduções em inglês: The Ink Dark Moon: love poems by Ono no Komachi and Izumi Shikibu, de Jane Hirshfield e Mariko Aratami e Haiku by Japanese Wome: Far Beyond The Field, de Makoto Ueda.
O Ocidente só conhece os quatro grandes mestres do haicai: Matsuo Bashô, Yossa Buson, Kobayashi Issa e Masaoka Shiki. Poucos sabem que mulheres escreveram haicai, algumas, contemporâneas dos mestres. Nas mais antigas antologias japonesas é raro o registro de qualquer obra feminina. Quando aparece, é omitido o nome da autora, e única identificação é a do marido – “esposa de Nitsusada”, como acontece em 1663.
Durante muito tempo se pensou que o haiku era uma prática exclusivamente masculina. Nos séculos IX a XI, o tanka tornou-se uma forma feminina por questões ideológicas. Como os homens escreviam poemas em chinês, as mulheres dominaram o tanka. Assim, esta forma poética passou a ser conhecida como feminina. Contrastava por ser uma escrita solitária e individual, enquanto o haiku era parte de uma atividade em grupo. A partir do século XVII, mais mulheres começaram a compor haiku.
O haicai é um poema de dezessete sílabas, o tanka, de trinta e uma. O haicai é objetivo, o tanka, subjetivo. Mas a forma do tanka é anterior à do haicai. Foi Bashô quem criou esta forma, reduzindo as trinta e uma sílabas do tanka para dezessete do haicai. E, em vez de abordar os sentimentos, o poeta passa a observar a natureza e a morte.
Houve duas grandes poetas de tanka, Ono no Komachi (834 – ?) e Izumi Shikibu (974-1034). Elas surgiram no florescimento da cultura japonesa, quando a capital foi instalada em Quioto (794 a 1185). Nesta época, as filhas de aristocratas eram enviadas à corte para conseguir um bom casamento. Era através da união que os nobres conseguiriam uma boa posição política. As moças eram educadas para competir com os homens. Conheciam artes e literatura. Os homens compunham obras em chinês, e escreviam sobre história e filosofia. As mulheres, impedidas de aprender os ideogramas chineses, propagaram a escrita silábica, escrevendo sobre literatura e poesia, explorando temas como o amor, a natureza e a religiosidade.
Assim surgiu o romance O conto de Genji (Genji monogatari), escrito por Lady Murasaki Shikibu e O livro do travesseiro (Makura no sôushi), escrito por Sei Shônagon, considerados os dois maiores clássicos da literatura japonesa.
Ono no Komachi e Izumi Shikibu são as duas maiores poetas clássicas do período. Então, as mulheres cultivavam grande independência. Embora os privilégios fossem masculinos, às solteiras era permitido ter vários namorados, inclusive com homens casados, desde que usassem a discrição. As casadas só podiam ter um marido, enquanto a eles eram permitidos casos extraconjugais. A mulher podia ser proprietária de terras e usufruir de renda própria, divorciar-se e separar-se, independente da opinião familiar.
O domínio da escrita e da poesia era um fator de ascensão social. A arte não era confinada aos artistas. Partilhada por membros da corte, qualquer acontecimento público ou privado era celebrado em versos. A poesia era o veículo essencial para ativar relacionamentos amorosos.
Os poemas a seguir foram traduzidos para o português lusitano por Luísa Freire, a partir da antologia organizada por Makoto Ueda, Far Beyond the Field: Haiku by Japanese Women.
ONO NO KOMACHI
Quando o meu desejo
se torna intenso demais,
visto a roupa de dormir
virada pelo avesso,
escura casca da noite.
*
Hoje de manhã
Até as minhas campainhas
Estão escondidas
Para evitarem mostrar
O cabelo em desalinho
IZUMI SHIKIBU
Deitada e sozinha
de cabelo negro solto
e emaranhado,
sinto desejo daquele
que primeiro veio me tocar.
*
Não fiques corado!
Todos adivinharão
Que dormimos juntos
Sob as pregas enrugadas
deste manto avermelhado
enomoto seifu [1732-1815]
ao romper do dia,
à conversa com as flores,
uma mulher só
*
takeshita shizunojo [1890-1946]
na sombra das flores
um besouro a rastejar –
súbita chuvarada
*
hashimoto takako [1899-1963]
cachos de glicinia –
retém em si a chuva
até onde podem
*
mitsuhashi takajo [1899-1972]
suas vidas duram
só enquanto estão a arder –
mulher e pimenta
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O Japão no Feminino – Tanka – séculos ix a xi – organização e tradução, Luísa Freire. Assírio e Alvim, 2007.
O Japão no Feminino – Haiku – séculos xvii a xx – organização e tradução, Luísa Freire. Assírio e Alvim, 2007.