Resenha de “Enclave” (2018) por Henrique Amaral
Henrique Amaral é mestrando em Literatura Francesa pela USP. Entre 2014 e 2017, pertenceu ao grupo de editores da Cisma – revista de crítica literária e tradução. Atualmente, prepara seu primeiro livro de poemas.
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“Viver a totalidade-mundo a partir do lugar que é o nosso,
é estabelecer relação e não consagrar exclusão.”
Édouard Glissant, Introdução a uma poética da diversidade [1]
Quando Édouard Glissant, pensador natural da ilha da Martinica, sugere que partamos do “lugar que é o nosso”, ele não está propondo nenhuma espécie de isolamento espacial. De modo contrário, o intento de Glissant é “viver a totalidade-mundo”, o que equivale, nos termos de sua trajetória, a integrar sua ilha natal – ainda hoje uma possessão francesa – à vastidão e diversidade das paisagens contemporâneas. Porém, o que se deve fazer para “estabelecer relação e não consagrar exclusão”? Como é possível falar a partir de seu (de nosso) lugar, sem universalizar seus valores, sem pretender transformá-lo num centro?
Penso que algumas respostas a essas inquietações podem ser dadas, em chave poética, pelo recente livro do catarinense Marcelo Labes, Enclave (Editora Patuá, 2018). Desde o título, o conjunto de poemas põe em primeiro plano isto que chama de |enclave| – assim que a palavra vem grafada ao longo das páginas –, e que equivale à primeira vista a um local fechado sobre si:
|enclave| é um enorme vale
de onde não se encontra saída
a entrada é verificada e permitida
mas perde-se o caminho de volta
desorienta-se até não saber mais
se existe um lado de fora
a permanência é suportada sob enormes
camadas de lama […]
(xxii., p. 43)
Denotativamente, “enclave” significa um “território dentro de outro território”, espécie de reduto situado no interior de outro espaço – daí talvez os traços de isolamento, ou ainda de ausência de saída presentes no trecho acima. No entanto, longe de uma abstração generalista, o |enclave| de Labes designa um local bastante específico, tanto em termos geográficos quanto de formação histórico-social. Trata-se do vale do Itajaí-Açu, nos arredores de Blumenau, Santa Catarina, região onde impera certa ideologia que privilegia a suposta origem europeia (sobretudo alemã) da população, em uma reprise do velho afã de uma Europa nos trópicos:
o Weser
o Ems
e o Elba
deságuam no
Mar do Norte
Já o Itajaí-Açu
que atravessa
território xokleng
não avisa a quem vem
que o Mar do Norte
ficou para trás
há muitas milhas
náuticas
(i., p. 17)
Neste que é o primeiro poema do livro, já é possível notar o desejo do poeta de combater, desautorizar e mesmo ironizar o discurso oficial sobre o |enclave|, discurso este que se mostra tão desajustado ideológica quanto geograficamente. O mesmo olhar que pretende reconhecer os rios alemães – Weser, Ems, Elba – em território brasileiro é aquele que ignora as especificidades deste, seus habitantes autóctones, o calor caudaloso de suas águas. Contra essa postura, o poeta se arma de seus vários recursos, que vão do emprego da designação indígena (“território xokleng”) em contraponto às alemãs, até denúncia da violência embutida no processo de (re)colonização, como aparece no poema xxii.: “um xokleng que cruzasse/ acidentalmente o caminho/ de um homem branco/ era cortado ao meio/ pelo facão afiado”. Todavia, no volume, tal violência reverte-se em acuidade poética, como se fosse o próprio |enclave| o corpo talhado a golpes de facão:
atlântida desafundada
pasárgada para os desavisados
europa transcontinental
zona schengen prolongada
deleite de ruralistas
tratantes canibalistas
comprovação empírica
dos terraplanistas
o |enclave| é um paraíso
a céu aberto ou um esgoto
não é possível decidir
sem remeter
ao reich e/ou
à república de curitiba […]
(xxvi., p. 48)
Nesse trecho inicial do poema xxvi., o autor reprisa algumas das representações que a região assumiu e assume aos olhos dos desavisados. Metonímia da colônia brasileira, ela passa de “atlântida desafundada” a “deleite dos ruralistas/ tratantes canibalistas”, de “europa transcontinental” a “comprovação empírica dos terraplanistas”. Com generosas doses de ironia, o que o trecho pretende é desmistificar tais visões, ao mesmo tempo em que propõe a urgência de uma decisão – se “o |enclave| é um paraíso/ a céu aberto ou um esgoto” – decisão esta que não se pode tomar “sem remeter/ ao reich e/ou/ à república de curitiba”.
A referência ao império nazista, em paralelo a um dispositivo midiático-judicial brasileiro de contornos no mínimo questionáveis, não deixa dúvidas sobre a decisão do poeta entre as alternativas citadas acima. Contudo, o que me parece mais notável é que não se trata de um mero esforço de rebaixamento do |enclave|, o que poderia levar à eleição de outra região como modelar e universal. Trata-se, antes, de uma insistente tentativa de pareamento, de busca de comparações, para que venham à tona as chagas escondidas sob a “pasárgada” aparente. Assim prossegue o poema xxvi.:
o |enclave| não pode ser compreendido
se não se levar em conta como o
estado de israel trucida o
povo palestino […]
Embora faça uma afirmação dessa natureza, o autor não entra no mérito de discutir, em termos mais teóricos, as semelhanças e diferenças entre a situação do Estado de Israel e aquela do |enclave|. Isto porque, conforme dito em outro texto, “[…] isso/ é um poema, não é uma/ aula de história”. Assim, não podemos esquecer que estamos lendo um livro de poemas, não um ensaio histórico-social, e este equilíbrio delicado entre os componentes – isto é, entre autoconsciência poética e profundidade argumentativa – consiste em uma das qualidades principais de Enclave. De fato, no livro são abundantes os dados, as informações, as influências de interpretações teóricas: há mesmo citações com suas respectivas referências bibliográficas! Não obstante, existe igualmente uma consciência capaz de organizar tais materiais no interior de uma engrenagem poética que, conforme notou Matheus Guménin na orelha ao volume, não permite excesso de elementos.
A meu ver, esse é um dos aspectos mais notáveis do livro de Labes, na medida em que não costuma encontrar paralelo na poesia produzida contemporaneamente no Brasil. Mas não é a única particularidade digna de nota. Ao lado dela, tem lugar um gesto que me parece um dos pilares para que o projeto – confessamente poético-político – sustente-se em ambos os termos. Trata-se de certo posicionamento do eu que realiza uma supressão radical da primeira pessoa, ou seja, daqueles signos que costumamos ver como manifestações palpáveis de uma subjetividade lírica. Ora, em Enclave há raros poemas que contenham a expressão verbal da primeira pessoa do discurso, sobretudo aquela do singular. Uma das poucas exceções ocorre no poema xxvii., que se inicia do seguinte modo:
se eu te dissesse ou tivesse coragem de te dizer que a gente precisa mesmo é ir pra longe porque é longe que a vida flui e é longe que se pode sonhar com algo um pouco mais nobre do que a aposentadoria ou um pedaço de chão que não amanheça soterrado com nossos filhos nossos pais quem sabe até nós mesmos dentro entre madeiras e móveis e pedaços de telhado […]
(xxvii., p. 50)
Embora nele surjam patentes os pronomes pessoais – “eu”, “te”, “a gente” –, esses parecem apontar antes para certas posições discursivas do que para pessoas empíricas, de carne e osso. É como se esse eu só aparecesse para sonhar, com o tu, uma rota de fuga, um percurso novo que evite a fixidez do território, com suas supostas garantias de hereditariedade e seus perigos de soterramento – uma das imagens mais recorrentes no livro, diga-se de passagem, é aquela das trágicas inundações ocorridas em Blumenau, no ano de 2008. Novamente, por trás daquelas máscaras enunciativas, o que vem ao primeiro plano é uma poética do espaço, neste caso projetada como algo distante e levemente utópico, “porque é longe que a vida flui e é longe que se pode sonhar […]”.
Salvo exceções como essa, predomina nos poemas de Enclave certa ocultação do eu que não se confunde, todavia, com primazia do objeto, numa suposta poesia objetiva, por exemplo de inspiração cabralina. Ao contrário, o que se pode observar é uma depuração tão profunda do entorno espacial, que ele passa a figurar como uma espécie de subjetividade mineralizada, de eu incorporado à paisagem:
há o vale
e há o morro
atrás do morro
outro vale
e outro morro
atrás deste
outro vale
além mais outro
quanto mais distante
o vale, mais difícil
de chegar. estar ali.
quanto mais profundo
o vale, maior a vontade
de partir.
(xiv., p. 33)
No poema xiv., um dos mais belos em minha opinião, encontramos apenas formas verbais infinitivas, impessoais, ainda que possamos olhar com desconfiança para o repetitivo substantivo morro. Em todo caso, a economia dos elementos geográficos – vale e morro – cria inicialmente um ritmo algo descritivo, como num quadro paisagístico. No entanto, as três estrofes finais bastam para tingir a paisagem de tons altamente subjetivos: atribuída à distância, há a dificuldade de chegar, de “estar ali”; ao lado desta, devida à profundidade, faz-se presente a “vontade de partir”. Ora, mas aqueles elementos são a própria figuração do |enclave|, a palavra vale é mesmo uma espécie de anagrama diminuto dele… Nesse sentido, sem necessidade da presença ostensiva de um eu, o quadro é turvado por duas paixões tão fundamentais quanto humanas: a dificuldade de habitar um lugar e o desejo de partir dele.
Longe de uma saída fácil – que estaria, por exemplo, em falar de fora desse espaço –, o que o livro propõe como gesto fundamental é permanecer no |enclave|, trazendo-o ao primeiro plano justamente para poder criticá-lo e eventualmente (por que não?) superá-lo. Avesso aos projetos egoicos da absolutização de si e dos próprios valores, esse é modo como o poeta consegue “estabelecer relação e não consagrar exclusão”, para retomar as ideias de Édouard Glissant.
Marcelo Labes decide viver e falar a partir de seu enclave. E, assim, alarga as fronteiras da poesia que se faz fora dele.
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[1] Em outra conferência do mesmo livro, Glissant afirma: “Primeiramente, sempre sugeri que o lugar é incontornável. Não existe mundialização a partir de uma série de diluições no ar. Porque se há diluição, não há relação. A Relação só pode tramar-se entre entidades persistentes. Quanto mais eu tiver consciência da relação da Martinica com o Caribe e do Caribe com o mundo, como em um sistema, como em um não-sistema de relações, mais eu serei martinicano, na minha opinião. Quanto mais eu insista em dizer: a Martinica é a Martinica, os outros são… menos eu serei martinicano. A relação verdadeira não é do particular com o universal, mas do Lugar com a totalidade-mundo, que não é o totalitário, mas sim o seu contrário em diversidade”. GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. p. 125. Trad. Enilce do C. Albergaria Rocha.