#Tbt Cine – “Na Flor da Idade (In Bloom)” (2013)
Na Flor da Idade (In Bloom). Direção: Nana Ekvtimishvili e Simon Gross. País de Origem: Geórgia, 2013.
Nos últimos anos, o cinema da Geórgia vem ganhando projeção internacional e amealhando prêmios ao redor do mundo. A Ilha dos Milharais (2014) é um bom exemplo dessa realidade. O filme de George Ovashvili recebeu uma menção honrosa no São Paulo International Film Festival, edição 2014, e também o troféu máximo do Karlovy Vary International Film Festival, na República Tcheca. Outra película notável é Hostages (2017) de Rezo Gigineishvili, que conquistou reconhecimento ao seu diretor em festivais realizados na Rússia e participou de importantes eventos cinematográficos como o de Edimburgo (Reino Unido) e Haifa (Israel).
Antes do sucesso das obras de Ovashvili e Gigineishvili, Na Flor da Idade (em inglês In Bloom e no original Grzeli Nateli Dgeebi), de 2013, viveu idêntica jornada de glória e distinções em festivais e premiações para além das fronteiras da Geórgia, como nos festivais de Berlin, Milão e de Saravejo, sendo que nesse último foi laureado como melhor filme.
Galardões à parte, Na Flor da Idade é um retrato cruel da crise vivida pelo país no início dos anos 90, durante o conflito étnico entre a Geórgia e a região da Abecásia, e como esse transe afetou às famílias e, principalmente, roubou o processo natural de crescimento de muitas meninas, destituindo-as de sua infância e atirando-as no “olho do furacão”, obrigando-as a viver entre um sonhado protagonismo que não lhes pertenciam, por estarem em uma sociedade patriarcal, e a sobrevivência de seu universo interior.
A realização cinematográfica de Nana Ekvtimishvili e Simon Gross centra-se na amizade entre Eka (Lika Babluani) e Natia (Mariam Bokeria), adolescentes de 14 anos que residem em Tbilisi, capital de uma Geórgia recém-independente do poder político, econômico e ideológico da União Soviética. E a crise não tem relação tão somente com as incertezas políticas criadas pelas circunstâncias históricas, há uma falência de valores, não por suscitar mudanças extremas que culminam em amoralidade e negação das tradições, mas por agravar comportamentos hostis, diferenças regionais e o machismo que dão forma a homens levados à guerra, pelo mesmo sistema que os despoja de sua “fortaleza residencial” e que, em nome de um poder que se fragmenta cada vez mais, bestializa-os com a violência própria dos soldados que não conseguem se livrar do combate.
Na flor da idade, as amigas têm que lidar com situações-limite que as forçam ao amadurecimento precoce. A cineasta Ekvtimishvili e o codiretor Gross mostram essa passagem a partir dos efeitos cotidianos do recrudescimento social gerado pela guerra e da opressão sofrida pelas mulheres, em uma sociedade que exige a prevalência de um tipo agressivo para estabelecer-se em um cenário árido de alcoolismo, assassinatos, racionamento de alimentos e violência doméstica.
Esse ambiente de insegurança, de instabilidade social e de conservadorismo ganha linhas significativas quando Natia recebe, de um apaixonado – rapaz pelo qual a garota claramente nutre afeição –, um revólver de presente. O gesto amplia o círculo de perigos expostos. Em tese, a pistola deve protegê-la desses perigos. Apesar de não saber o que fazer com o revólver, Natia se encanta pela arma de fogo. A partir de então, escola, família e costumes, além das adversidades promovidas pelas ruas, contribuem para dimensionar essa possibilidade de tragédia iminente, já que nenhum lugar parece seguro.
Sobre as amigas, Eka é uma menina tímida e séria, que se equilibra entre duas ausências, da mãe, que trabalha em demasia, e do pai, que está preso por assassinato – ela reluta em visitá-lo. Natia é uma jovem cuja beleza se faz notar, que, em casa, conhece o inferno das relações conturbadas, pois o pai alcoólatra desconta as frustrações de um tempo sombrio na própria família. Assim, a casa é reflexo da desestruturação do país.
Na Flor da Idade investe em uma fotografia sépia na qual detalhes da ruína em que se transforma Tbilisi ganham destaque para enfatizar as marcas que a guerra crava não apenas na arquitetura da cidade, mas no ânimo de seus residentes, que convivem com a ameaça de uma explosão de violência e com a fome.
Sendo uma obra sobre o amadurecimento forçado, o vínculo dessas amigas inseparáveis é apresentada sob a égide do que pode vir a romper essa ligação profunda, podendo ser a presença de um admirador de Nati, rapaz que faz parte de uma gangue e que a persegue insistentemente, a pistola, que engendra um clima de tensão e também de solução para as tiranias diárias, ou os produtos da guerra, que acossam e têm o poder de desumanizar. Neste sentido, a produção georgiana enfrenta o machismo reinante na sociedade de Tbilisi, se não com rompantes de indignação e superação, mas ao revelar como exerce seu domínio ao privar jovens de seu direito de escolha. As regras que as mulheres são obrigadas a seguir e o comportamento viril dos homens em busca de autonomia e autoridade compõem o cenário que leva uma adolescente sequestrada a um dilema: o de se casar com seu raptor, já que a justificativa é o amor deste pela moça. A tradição institucionaliza a violação do corpo da mulher. E a revolta viva e incompreendida de Eka mostra o absurdo (e o crime) contido na situação.
Episódico, construído por gestos, olhares e silêncios, Na Flor da Idade investe, ainda que seja marcado por uma narrativa lenta, em alguns pontos de intensidade que marcam, de certo modo, o ritmo da vida, como nas passagens em que Eka baila ao som de uma tradicional música georgiana – em uma cena primorosa – e o motivo que faz o revólver que Natia ganha do seu primeiro amor voltar ao foco, deixando clara que a semiótica do objeto deslinda a emergência da calamidade que é (sobre)viver sob tensão, preenchendo a tela e nos atingindo para completar a abertura “insidiosa” da película.
Com um par de atrizes talentosas e uma direção que aposta em tratar a guerra como um espectro, reforçando sua presença pelos seus efeitos, em vez de exibir combates e bombardeios, o filme de Ekvtimishvili e Gross traz à tona a destruição física e moral em que crise econômica, tradição patriarcal e infâncias roubadas entram em colisão e afirmam o modus operandi de uma violência naturalizada. Na secura e no imediatismo que sufocam uma população e oprimem meninas, convocando-as a se moldar a um mundo que desejam rechaçar com todas suas forças, Eka desperta Natia para a resistência, ao não permitir que ela se manche de sangue em mundo masculino hostil e vingativo.
Ao se manifestar com toda sua brutalidade, a virilidade nefasta, abençoada pelo machismo incrustado na sociedade, sofre uma queda graças à recusa das jovens amigas em se conduzirem conforme a “lei de quem tem o poder”. A vida adulta as recebe diante do sexismo e das barbaridades da guerra, mas ambas não são mais garotas indefesas, são o retrato de uma sabedoria, de uma percepção que estava sendo dirimida desde o colapso soviético, e da possibilidade de uma nova sociedade.
Baseado nas memórias de Nana Ekvtimishvili, Na Flor da Idade é indispensável para quem prefere um cinema realista, com um ritmo que aposta em um efeito progressivo, que parte da asfixia social para alcançar a possibilidade de iluminar existências que parecem não encontrar refúgios.