VAGABUNDA: Uma palavra, dois contos, e várias virgulas… – Por Gleycielli Nonato
A cuspida da palavra vagabunda é acida e corrói a autoestima, tanto que muitas mulheres aceitam o nome, mesmo sabendo que não merecem aquilo. VAGABUNDA, vadia, biscate, são tantas ofensas à moral da mulher, impregnado da sujeira do cuspe ácido, que quando queremos ofender um homem o chamamos de filho da puta. E mais uma vez fincamos a faca para aumentar a cicatriz de uma mulher, mesmo que a intenção seja machucar o homem. Até porque, vadio, vagabundo, safado, entre outros, são elogios. A virilidade masculina nunca é afetada pelo menosprezo. Porque eles aprenderam a se amar e se impor acima de tudo, ou melhor, acima da mulher.
Vagabunda virgem
Quando tinha onze anos de idade, meu corpo estava mostrando sinais de que estava chegando à puberdade. Eu tinha mais seios que minhas amigas e um quadril mais largo do que quando tinha nove, mas nem sabia direito o que era aquilo, e a vergonha de perguntar pra minha mãe era tanta que eu fiquei com medo quando sujei a cama de sangue na primeira menstruação. Só que isso eu já tinha treze anos.
Com onze, brincava de pega-pega na rua de casa, ficava até tarde na praça correndo e fazendo bagunça com a gurizada. Em uma das noites de brincadeira, me escondi em cima de uma arvore, como sempre fazia. Junto comigo veio o menino do bairro que sempre estava ali brincando. Ele chegou por trás de mim em um galho de árvore e colocou suas mãos dentro da minha blusa, começou a apertar os meus seios e eu não sabia o que fazer. Quando minha mãe me gritou, desci em um pulo só de cima da árvore e logo em seguida o menino. Minha mãe viu.
— Você estava com um rapaz no escuro da árvore, VAGABUNDA? Mas é bem porcaria mesmo — gritou minha mãe, quando cheguei em casa.
Eu não sabia o que era a palavra VAGABUNDA, mas entendia que minha mãe estava me ofendendo. Lembro-me de respirar fundo várias vezes para não ter que chorar. Eu não podia chorar, se chorasse, eu iria apanhar (“agora vou te dar motivo para chorar”, era o que ela iria falar). Então não contei a ela o que o menino fez. Fiquei com medo.
No dia seguinte, perguntei a uma menina mais velha o que era a palavra VAGABUNDA, e ela me disse exatamente o que se tratava. Eu me senti suja, tão imunda. Tudo doía dentro de mim. E dei razão a minha mãe, afinal olha só o que tinha acontecido na árvore. Eu podia ter gritado, falado não, mas não fiz nada. Não sei, só sei que não tive reação, talvez eu fosse uma VAGABUNDA mesmo. Uma vagabunda virgem.
Eu não sentia vontade de chorar pelo que o rapaz fez, eu nem sabia direito se era certo ou errado, mas quando lembrava da cara da minha mãe olhando pra mim, como se fosse a criatura mais vulgar da face da terra, isso me dava vontade de chorar. Eu queria contar pra ela, contar que o menino havia passado a mão em meus seios, saber o que eu devia fazer. Mas eu tinha medo, e muita vergonha.
Quando via cenas de sexo ou até beijo na televisão, eu abaixava a cabeça, ficava constrangida de assistir. Um dia a vizinha estava em casa e assistia a novela enquanto conversavam com minha mãe e uma cena daquelas apareceu na TV. A vizinha perguntou a minha mãe se não era hora de colocar as crianças para dormir. E minha mãe respondeu convictamente:
— Só por causa disso? Essa guria já perdeu a inocência faz tempo.
Não, eu não perdi. Eu não sabia o que era aquilo, ninguém havia me falado, nem na escola e muito menos em casa. Eu só queria leite morno e colo. Me trancava no banheiro para chorar, mas ficava olhando no espelho os meus olhos, e eles não choravam. Nenhuma lagrimazinha sequer, nada, nenhuma reação aparente. Escovei os meus dentes e ficava pensando a noite toda se eu era mesmo uma vagabunda. Na verdade, já estava ciente de que era.
No dia seguinte, ia para a escola cansada, afinal não dormia bem. Meu rendimento estava péssimo, minhas notas haviam baixado muito e a professora foi pedir satisfação. Depois de escutar tudo e mais um pouco sobre o quanto eu estava mal, e como não conseguia fazer nem as tarefas básicas, a professora me deu um bilhete para ser entregue a minha mãe. Eu fiz isso. Ela leu o bilhete e me deu um tapa na cara.
Saí correndo de casa e fui para cima da árvore chorar. Fiquei lá esperando minha mãe chegar da escola. Quando achei que já não havia mais lágrimas, o menino chegou, eu quis descer, mas ele impediu. Perguntou, carinhoso, o porquê estava chorando. E por trás de mim, no mesmo galho, encostou minha cabeça em seu corpo, e com uma das mãos me fazia carinho na cabeça. Com a outra, apertava os meus seios. Eu não sabia reagir de novo, estava tão densa no carinho que achei que as mãos em meus seios compensasse. Minha mãe viu nós dois na árvore, me arrancou pelos cabelos.
— Olha aqui, VAGABUNDA, se você aparecer grávida aqui, vai pra rua buchuda mesmo. Por que você não se casa logo? Arrume um marido e me deixe em paz. Tenho outros três pra cuidar, pare de me dar trabalho.
E foi isso que eu fiz. Eu tinha onze anos, era uma VAGABUNDA virgem. Com treze, eu menstruei, com quatorze, perdi minha virgindade. Com quinze, conheci Valdino. Com dezesseis, tive minha primeira filha. Me tornei tudo o que eu nunca quis. Foi assim que eu me tornei a minha mãe.
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Homens de bem não se casam com vagabundas
Eu morava em um assentamento ao lado de uma cidadela, um cidade tão pequena que todos sabiam exatamente o que estava acontecendo por ali. No dia da festa da Folia de Reis, eu combinei com o meu amado de nos encontrarmos para ver os fogos. Escondidos, longe dos olhos de meu pai, meu irmão ou de quem quer que fosse. Eu o amava e queria um momento só nosso. Fugi depois da prece do padre e fui até uma mata, na beira de uma cachoeira que havia por perto. Nos abraçamos, nos beijamos, fizemos promessas. E nesse fervor do amor, ele me deitou no chão, tirou a parte de cima de meu vestido e, ali na grama fria das margens de uma cachoeira, eu tive a noite mais linda da minha vida, mas também a pior.
Meu irmão chegou na hora do ato de amor, e com fúria me puxou pelos cabelos, chutando meu amado para longe. Me arrastou pelo braço, e eu ainda nem tinha me vestido, e estava com meus seios à mostra. Eu gritava, chorava, mas ele não ouvia. Me levou no meio da festa, onde todos estavam dançando e sorrindo, e me jogou nos pés de meu pai. Eu, seminua, com os cabelos cheios de folhas e gramas e o vestido sujo de terra.
— Peguei ela no mato prestando o papel de VAGABUNDA, pai.
Eu olhava para o lado e via os olhos das pessoas me olhando. Dentro de suas cabeças, gritavam VAGABUNDA. Me olhavam com nojo. As amigas de minha mãe balançavam a cabeça em sinal de reprovação e minhas amigas fingiam não me conhecer. Meu pai me arrastou para casa, e eu fui olhando para trás, eu não via ele, eu não via o meu amado. Levei uma surra de chicote de rabo de tatu, mas nada doía mais do que a forma como fui tratada.
Dois dias se passaram e nada de meu amado aparecer. Ele deveria vir, me defender, falar com meu pai e meu irmão, mas não veio. No terceiro dia, fui com minha mãe entregar umas encomendas de galinha caipira na cidade, enquanto minha mãe conversava com uma amiga, atravessei a rua e me sentei no meio fio do outro lado. E ele, meu amado, passou por mim a cavalo, me olhou e não fez nada. Foi embora como se não me conhecesse. A vizinha do lado viu a cena, me deu um copo d’água e disse:
— Mas, menina, por que você foi pro mato com ele?
Por que? Foi exatamente isso que fiquei pensando. Em casa, deitada em minha cama, eu percebi, ou melhor, lembrei-me que naquela noite ele não apareceu para me defender, ele nem estava ali.
E meu irmão não fez questão de dizer o nome dele, só eu fui humilhada, só eu fui chamada de VAGABUNDA. A integridade dele continuou intacta, tanto que me viu e sabia do que havia acontecido, sabia de meu estado, mas passou reto, pois agora eu sou uma VAGABUNDA, e nenhum homem de bem se casaria comigo.
Peguei uma faca na cozinha, passei pelo galinheiro e segui andando. Encontrei uma laranja no pé, descasquei e continuei andando. Essa pergunta ficava martelando em minha cabeça “por quê?”.
A cidade toda viu os meus seios, minhas lágrimas, minha dor. Meu pai culpa minha mãe, meu irmão não tem remorso. Minhas amigas não sentam mais ao meu lado, as mães delas não deixam. Olha só o que me tornei?
A cidade lá fora vai lembrar pra sempre daquele dia de Folia dos Reis e, pior, jamais me deixarão esquecer. Meu amado não pode se casar com uma mulher que é chacota da vizinhança. E foi ali, de frente para a cachoeira, na mesma grama, que com punhos abertos ao sangue eu deitei para esperar a minha resposta. “Por que?”
Gleycielli Nonato é Indígena da etnia Guató do Pantanal de Mato Grosso do Sul; acadêmica de Letras e Literatura na UFMS Campus Coxim; escritora, radialista, ativista social e cultural; Membro da Academia de Letras do Brasil seccional Coxim, cátedra 11.