Há sangue de índio em seu prato – Coluna “Ecoa” (3.3.20)
Mato Grosso do Sul é um dos Estados mais “produtores” do Brasil, com o Pantanal propício para o gado Nelore e que tem o seu solo ideal para plantações de Soja e Cana-de-açúcar, sendo assim possui cidades que só existem porque existe o agronegócio. Aqui é possível encontrar famílias que passam gerações sendo funcionários de uma mesma Fazenda.
Dessas bandas carne vermelha tem sido espalhada pelo mundo, e é bem provável que a carne que está em seu prato hoje tenha vindo dessa nossa casa, já que somos nós pantaneiros sul-mato-grossenses responsáveis por essas rubras fibras que é exportada do nosso Brasil de anil.
Um amigo paulista disse certa vez de boca aberta o quanto a carne em Mato Grosso do Sul é barata: “Em São Paulo não dá pra fazer churrasco assim”. Falou ele impressionado com a fartura de nossa terra.
Na gastronomia, a cultura da carne do homem pantaneiro e de suas tradições parece algo que sempre existiu por aqui, nesses quilômetros de Fazendas, terras distantes e espalhadas pelo Pantanal, onde o Nelore vive aos cuidados dos peões pantaneiros, conhecedores das correntes sinuosas das águas e rústica da lida.
Mas o que quero dizer aqui neste texto, é exatamente a MARCA que essa cultura traz tatuada na alma e na voz dos que estavam aqui antes disso tudo acontecer. Aqui, o que se faz hoje com boi, ontem se fazia com anta, jacaré ou capivara.
Na guerra Brasil-Paraguai, Mato Grosso do Sul virou cenário de disputa, e na Retirada da Laguna os que iam para a luta eram justamente os que não tinham nada a ver com essa Rusga.
Índios tiveram seus territórios invadidos, e logo depois a promessa falaciosa de que as teriam de volta se ajudassem o Brasil a ganhar essa guerra de trinca contra o uno Paraguai. E os ingênuos até a presente data esperam essas terras de volta. Muitos hoje trabalham nas Fazendas que estão localizadas justamente em cima das terras que um dia foram suas. Em contrapartida, há aqueles que se encontram marginalizados, espalhados em periferias, acuados em reservas e acampamentos e que continuam sonhando com aquela promessa que ainda não fora cumprida.
Lamentavelmente há casos ainda mais extremos: Famílias inteiras em brigas sangrentas entre indígenas e fazendeiros, um verdadeiro bang bang.
Para que haja uma carne saborosa em seu prato e os lucros da soja, indígenas vivem em acampamentos em beira de estrada, lutando dia a dia por suas terras tradicionais. Acuados em territórios onde esse espaço geográfico e a condição da terra não lhes possibilitam fazer o extrativismo para sobreviver.
Em condições desumanas, com o índice de doenças altíssimas em crianças indígenas, a fome e a solidão da alma, desnutrem e matam esse povo todos os dias. Parece até que esse é o propósito… Para piorar, as drogas e o álcool tem feito estragos assustadores em muitas aldeias. Suicídios, violência, estupros, brigas e muito desamor…
Definitivamente, um gado Vacum está valendo mais que a alma desse povo.
Uma criança indígena em Mato Grosso do Sul acorda e não tem perspectiva de vida. Quando não é assombrada a noite pela senhora doença, será de dia pela dona fome. E a semana inteira seus pais lutam para eliminar a tristeza de seus corações. Cada madrugada o orvalho rega as plantações de soja com o sangue dos indígenas.
Desde a Constituição de 1988, a famosa Constituição Cidadã onde se reconheceu e deu o direito aos indígenas às terras tradicionais, o problema insiste, persiste e as mortes aumentam gradativamente. São fazendeiros com sua pólvora e estanho e seus jagunços peritos na arte de intimidar índio. Muitas vezes quem tem o poder de polícia é acionada, não para proteger, mas para retirar o indígena de suas próprias terras, onde o governo a vendeu para fazendeiros.
As mídias falam timidamente de tribos envenenadas por agrotóxico, de aviões que sobrevoam aldeias espalhando doenças e morte até esses povos, terras já homologadas e mesmo assim o agronegócio insiste em não as devolver.
Por isso, quando escuto frases como de Sonia Guajajara, onde ela diz “ Se eles não nos deixam sonhar, nós não os deixaremos dormir” me remeto ao grito que ecoa, aos tambores rufando no silencio da mata, como o berrante do pantaneiro no horizonte da tropa ou como água de cachoeira caindo em pedra. Não há outra maneira de sobreviver que não seja a luta e é resistindo no dia a dia que Terenas, Guatós, Kiniquinauas, Ofaiés, Guaranis e Kaiowás e outras etnias renascem, levantam e resistem.
Apesar das altissonantes vozes pedindo políticas públicas, a situação do índio em Mato Grosso do Sul é alarmante, suas condições sociais, psicológicas e de saúde estão precárias, vivendo de uma maneira onde sua maior ajuda é o assistencialismo.
A luta pelas demarcação de terra existe, mas infelizmente o resultado parece estar distante. O Congresso Federal muitas vezes tenta aprovar PECs onde inviabilizam as demarcações e a recuperação de terras tradicionais, tudo isso em nome da dita economia.
Não estou dizendo aqui que você não possa consumir carne vermelha ou derivados da tia soja e dona cana, mas posso pedir para que quando você olhar para o que está contido em seu prato, enxergue através dele o sangue de índio escorrido ao chão por longas gerações até que esse alimento chegasse a sua mesa. Até porque o tradicional churrasco pantaneiro faz parte da minha cultura e também faz parte de mim.
Antes da real necessidade de tudo o que a carne é capaz de nutrir, nutre em mim algo superior, por conta de minha essência, e me motiva a lutar sem esmorecer toda a vez que um parente está sujeito à morte apenas por ser quem é, nesse etnocídio que lhe acontece todos os dias.
Se não houver sensibilidade à causa, à resistência e à luta dos povos, demarcações e ações que priorize a vida ao invés do lucro, teremos o sério risco de eliminarmos os nossos povos da floresta.
Minha voz não se cala, meu grito ecoa e o meu apelo brada por Demarcação Já, pelo direito à sobrevivência, pela cultura de ser conectado à terra, pela essência nativa, pois se um dia a humanidade precisar aprender a sobreviver sem destruir, eles terão que perguntar aos índios, mas e se eles não existirem mais?
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Gleycielli Nonato é Indígena da etnia Guató Pantanal MS;
Acadêmica de Letras e Literatura UFMS Campus Coxim;
Escritora, radialista, ativista social e cultural;
Membro da Academia de Letras do Brasil seccional Coxim, cátedra 11.