“Contos, Itans e Fábulas de Escrevivências”: reflexões sobre o racismo – Por Maria Clara Bertúlio
Desde janeiro de 2018, assistimos ao enfraquecimento das Instituições culturais. O problema, ou elemento de crueldade, é que o desmonte da cultura foi um projeto anunciado, defendido por Bolsonaro e seus apoiadores – entre eles, infelizmente, artistas e produtores culturais – durante as eleições presidenciais.
Quem passou pela cadeira da Secretaria Especial de Cultura, nestes quase quatro de mandato, fez o jogo do capitão. Afinal, se vingar é uma especialidade deste (des)governo. E quem é escolhida(o) para o cargo, parece ter algo a tratar com a cena cultural brasileira.
A máquina pública no setor cultural sofreu seríssima avaria, mesmo sendo responsável por 2,5% do PIB nacional, equivalente a 170 bilhões de reais, segundo a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro [Firjan] (ler Economia da Cultura: Entenda a relação entre cultura e economia).
Artistas, trabalhadores da cultura e sociedade, contando com projetos legislativos, como a Lei Aldir Blanc, têm resistido a esse desmonte, à criminalização da arte e às tentativas de difamar e obstruir projetos e a circulação de obras/ produtos culturais.
Diante do veto do presidente Jair Messias Bolsonaro à Lei Paulo Gustavo (e agora a Aldir Blanc II), que previa o repasse de R$ 3,86 bilhões em recursos federais a estados e municípios para combater efeitos da pandemia, a Ruído Manifesto propôs a idealizadores, artistas, produtores culturais e jornalistas, que apresentassem os projetos que ganharam vida graças à Lei Aldir Blanc, lançado em 2020, que proporcionou o lançamento de cinco editais pela Cultura, da Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer de Mato Grosso, e pelo Edital 01/2021/SECEL/MT: Movimentar – SECEL/MT. Esses editais, além de agitar o cenário artístico-cultural do estado, geraram resultados econômicos e sociais.
Para dar continuidade a série, Maria Clara Bertúlio escreve sobre o espetáculo Contos, Itans e Fábulas de Escrevivências. Teatro negro que coloca em cena as vivências negras e seus corpos, que protagonizam narrativas cênicas que enfrentam o racismo e um discurso hegemônico de anulação e dominação do outro, para o resgate e valorização da identidade e cultura negras.
Contos, Itans e Fábulas de Escrevivências foi contemplado pelo edital da Lei Federal Aldir Blanc.
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50 Cantos de Lívia Viana (Prefácio).
I Prêmio Rodivaldo Ribeiro de Literatura (Prefácio).
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“Contos, Itans e Fábulas de Escrevivências”: reflexões sobre o racismo
A ideia da montagem da peça teatral “Contos, Itans e Fábulas de Escrevivências”, aprovada pela Lei Aldir Blanc, surge da necessidade da construção de narrativas cênicas a partir da vivência negra, tendo como eixo discursivo as contradições impostas pelo racismo, as quais perpassam a experiência dos corpos negros em todo mundo.
Assim, os conceitos de “Itan” e “Escrevivêcia” são mobilizados na construção de diálogos com a cultura negra em sua realidade cotidiana, tendo a tradição Iorubá como referência. Denomina-se “Itans” o conjunto de lendas e mitos do panteão africano que narra as histórias iorubanas envolvendo canções, danças e ensinamentos. Já o conceito de “Escrevivência”, cunhado pela escritora afro-mineira Conceição Evaristo, consiste na possibilidade concreta de narrarmos as nossas próprias histórias enquanto povo preto, movimento que contrapõe as narrativas hegemônicas unicamente construídas sob a perspectiva de dominação.
A partir da articulação desses conceitos, a experimentação e investigação de cena caminha para uma abordagem de Teatro Negro, vertente teatral que surge em meados da década de 1970, com Abdias do Nascimento, e estende-se aos dias atuais, tendo como premissa o protagonismo negro numa perspectiva de regaste, valorização e afirmação de identidades e culturas negras. Esta escolha aponta uma rota teórico-metodológica referenciada na ancestralidade, numa concepção de arte-vida, sobretudo, como instrumento de produção de saberes.
Entrementes, o processo criativo do espetáculo ocorreu de forma colaborativa, acolhendo a proposições de todos os setores envolvidos, iluminação, cenário e figurino, atuação, produção e direção. Para radicalizar a horizontalidade proposta por esta dinâmica de trabalho, convidamos três pessoas ligadas à cena negra a cada encontro para assistir ao ensaio e, ao final, fazer um bate-papo com o grupo, contribuindo com suas impressões, atravessamentos, críticas e/ou provocações. Esses encontros resultaram num processo dinâmico de produção coletiva onde o olhar de quem assistia mobilizava novos entendimentos sobre o potencial do que estava sendo desenvolvido, num viés de retroalimentação e aquilombamento de ideias.
O espetáculo foi apresentado em dois lugares diferenciados, no Museu da Imagem do Som de Cuiabá – MISC, escolha orientada na medida em que esse espaço vem se construindo como um referencial para os artistas negros em Cuiabá e Mato Grosso; e Comunidade Ribeirinha São Gonçalo Beira Rio. Expressivamente, para estimular um diálogo com a memória destes territórios, onde se inscrevem as marcas da ancestralidade desde a escravidão.
Em cena, a religião afro-brasileira é evocada desde a introdução da ação cênica, construída para acontecer em espaço aberto de ruas e praças, por isto, a saudação inicial é feita a Exu, que para algumas religiões de matriz africana é concebido com Entidade (Umbanda) e para outras como Orixá (Candomblé). Frente às distorções do ponto de vista do senso comum, no qual predomina uma vertente racista desta entidade, é importante reforçar ao contraditório que Exu é figura que representa o movimento, a linguagem e a comunicação. Muito distante da concepção que o racismo religioso tenta impor, descaracterizando e reduzindo esta importante entidade a uma figura nefasta. Muito ao contrário: Exu abre caminhos…
Após este primeiro momento, o público é convidado e conduzido por um cortejo, formado pelos atores, que entoam pontos e ladainhas, como em uma procissão. Ao adentrar o espaço de cerimonia, encontra-se um altar com fotos de crianças e jovens negros que tiveram suas vidas ceifadas pela violência cotidiana sobre seus corpos. O espetáculo segue construindo imagens através do espírito lúdico representado pela figura dos “Erês”, onde brincadeiras marcam os momentos de transições narrativas.
Assim, além de revelar o lugar de onde enunciam seus discursos, as histórias são reconfiguradas ao universo dos expectadores através do intercâmbios de memórias que se alternam e se entrecruzam. Nas palavras de Marcos Antônio Alexandre, “tenta-se recuperar o corpo crivado de memória coletiva” em uma instancia artística em que a memória é fonte de expressão da vida, pois não se refere mais ao uno, mas assume identidades múltiplas e coletivas.
Em memória de Toni Bernardo, irmão de África, e toda a população negra massacrada em nossos territórios.
Referências Bibliográficas:
ALEXANDRE, Marcos Antônio. O Teatro Negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba/ Marcos Antonio Alexandre – Rio de Janeiro: Male, 2017.
* Maria Clara Bertúlio é atriz-poeta-diretora-apresentadora mato-grossense, graduada em Teatro com habilitação em Direção pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), tendo desenvolvido parte dos seus estudos em Artes Cênicas na Universidade Estadual do Paraná/FAP, em Curitiba. Graduanda em Letras na UFMT, articula sua pesquisa voltada para a Literatura Negra e dedica-se a processos experimentais entre as linguagens do teatro, da poesia e da performance, exercendo também atividades no audiovisual. Recentemente, estreou como apresentadora no programa “Palavra Literária”, da TV Assembleia Legislativa de Mato Grosso; é bonequeira no coletivo “Círculo de Mulheres”, teatro de bonecas híbridas; compõe o “Selo Itan” de Literatura Negra Mato-Grossense (2º edição) e teve alguns poemas publicados na coletânea “Slam Xero de Xita” (2022), que reúne a produção de 15 poetas ligadas à cena do hip hop feminino em MT.