Escritas em Revoada entrevista Cissa Dias
Desde os nossos primeiros passos, nesse chão-espaço de palavras e construções poético-políticas, reforçamos o mote do nosso existir e fazer, enquanto poetas do semiárido baiano: escrever sobre nós e “com nós”, mas não somente para nós. Cada palavra liberta é também uma movimentação para o enfrentamento às exclusões, aos espaços e discursos dominantes fingidamente inclusivos. Infelizmente, ainda é comum que nossa escrita e arte seja tratada com inferioridade em relação à produção masculina. Além disso, quando somos convidadas a participar de eventos, via de regra, não somos remuneradas devidamente, num evidente desrespeito ao nosso trabalho e dignidade.
No intento de criarmos um outro movimento para essa gira de corpos e palavras, bem como de fortalecermos nossa produção artística-literária, a partir desse mês traremos aqui trechos de entrevistas com outras mulheres que escrevem, fazem arte e resistem aos sistemas anuladores, num entrelaço de vozes e experiências. Para abrirmos essa temporada de diálogos e reflexões, compartilhamos as experiências e pensamentos de Cissa Dias, uma das integrantes de LiterÁridas, que como ela mesma se apresenta “é artista do Médio Rio de Contas, jequieense, capoeirista, sambadeira, mãe, estudante de Licenciatura em Teatro pela UESB, palhaça do bando de Palhaços Nariz Aos A’Verso e poeta”.
Inicialmente, Cissa Dias nos conta que seu contato inicial com a poesia se deu ainda na infância, através dos textos dispostos nos livros didáticos de Língua Portuguesa. A seguir, compartilhamos trechos dessa nossa conversa tão cheia de potência:
ER: Enquanto mulher caatingueira semiárida que escreve, quais desafios você enfrentou – ou ainda enfrenta- para reconhecer-se escritora/poeta e expor seus textos?
CISSA: Acho que o primeiro desafio é, justamente, me reconhecer e me nominar como poeta. Precisei que outras pessoas, me dissessem, e ainda assim, tinha muita insegurança pra me afirmar como tal. Acredito que por ter a rede de apoio que tenho, a minha dificuldade maior, foi comigo mesma. Ainda hoje, tenho uma certa dificuldade para expor meus textos, pois como são textos muito íntimos, ainda me sinto como se tivesse sendo despida, quando os outros me leem.
ER: A partir das suas experiências com a produção e divulgação literária, como você analisa a inclusão da mulher escritora/poeta em espaços e eventos culturais?
CISSA: A gente ainda tem um longo caminho a percorrer, ainda mais, por se tratar de uma escritora que vive num contexto cultural de interior, do Nordeste e baiano. Mas sinto que, à medida que a gente mostra o nosso trabalho, consequentemente, a gente o fortalece, criando assim, estratégias de visibilidade. A forma como os editais estão sendo construídos, também, ajuda muito a nos dar visibilidade. Então acredito que o espaço que é nos dados, não é o ideal, mas estamos nos movimentando para isso.
ER: Na nossa existência há sempre algo que nos move, balança nosso pensar e existir… O que move a sua escrita? De onde ela vem?
CISSA: Acho que antes de tudo, a minha escrita é uma ferramenta de cura, de minha cura. Ela vem das minhas infâncias, da minha criança ferida, das minhas andanças, das relações muitas, das observações e leituras de mundo, e de tudo que me atravessa.
ER: Pensando nesses movimentos da própria existência e das palavras, para onde você deseja que vá a sua escrita?
CISSA: Não sei. Por que muitas vezes são coisas tão íntimas e profundas para mim, que acho que só são questões minhas. Mas talvez, eu deseje que a minha escrita chegue em quem consiga sentir ela.
ER: Há uma tendência dos grupos e vozes dominantes de colocarem as produções literárias e artísticas de autoras/es locais como, apenas, amostras, enfeites ou elementos secundários, por vezes estereotipados, de um determinado contexto, que não merecem reconhecimento e valorização financeira. Você já viveu algo parecido?
CISSA: Acredito que o maior problema que encontro nesse sentido, é que as pessoas não entendam que arte é trabalho e se é trabalho, tem que ser valorizado e respeitado como tal. Aqui na minha cidade, canso de negar convites para participar de forma gratuita de ações artísticas e culturais.
A partir da escuta/leitura das PalavrAções de Cissa muita coisa reverbera e ecoa em nós: pensar que ao compartilharmos nossos escritos nos sentimos despidas, é perceber o quanto estamos cobertas por tecidos sufocantes, que nos vendam, calam e imobilizam, como forma de controle de nossos corpos de mulher. A vulnerabilidade assusta e nós fazemos versos rumo à cura. Cura do corpo físico, que percebe que tudo pode e transita, cura de uma mentalidade desumana que paira em nosso solo tão farto. Escrevemos para desentalar, de fato, e assim reabastecer as cacimbas de esperança de um lugar onde nossos versos sejam cada vez mais sentidos.
A palavra de Cissa desperta a força que nos leva ao caminho da autovalorização. Por qual motivo nos entregaríamos a participar de tantos eventos renomados de forma gratuita se a nossa escrita já circula pelas ruas e redes marginalmente? Com quantos poemas se monta um prato de alimento? Com quantos livros faremos grana para quitar os boletos ao fim do mês? Quantas apresentações e participações em eventos pagarão um curso de escrita poética ou outras capacitações e vivências?
A coragem de Cissa em dizer não a convites-migalhas que aparecem no caminho é para além de essencial, é libertadora. Liberta ela para que seu voo seja impulsionado como de fato merece e em seu pleno voo convidativo, cativa nós e outras mulheres a repensarmos os lugares que realmente queremos ocupar e em quais condições. Desfazendo os bloqueios e nossa dificuldade em dizer não à desvalorização. AR. Sente esse descarrego? É o desbloqueio acontecendo. Digamos não! Não! Nã, nã, não, quantas vezes precisarmos! Sem medo de sermos esquecidas. Muitos convites estão por vir, mas só aqueles que nos respeitam enquanto artistas trabalhadoras merecem nossa presença.
Pók Ribeiro
SertãoSol
Ádila Madança
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Na coluna mensal Escritas em revoada, Ádila Madança, Pók Ribeiro e SertãoSol trarão retalhos e reflexões das suas escrevivências e de outras tantas mulheres do semiárido baiano, interconectando literatura com outras linguagens artísticas produzidas por mulheres. As colunas alternarão reflexões em torno do processo político-poético, entrevistas com mulheres escritoras do semiárido e degustação de textos literários e outras criações artísticas, numa perspectiva de enfrentamento aos padrões coloniais silenciadores. A coluna irá ao ar…. de cada mês.
Sobre as colunistas:
Ádila Madança é artista e mãe, natural de Juazeiro/BA, que transita entre as linguagens da literatura, teatro e performance.
Pók Ribeiro, é poeta, escritora e professora da educação básica. É autora dos livros Pedilua (2017) e Endométrio (2019) e um das organizadoras da LiterÁridas, uma antologia de mulheres poetas do semiárido baiano.
SertãoSol é artista arteira, agrocaatingueira e segue trançando caminhos poéticos que a levam a magia das linguagens literárias.