O fio de fabular lâminas: “Navalha”, de Demétrio Panarotto – Por Cristiano Moreira
Cristiano Moreira é Doutor em literatura brasileira.
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O fio de fabular lâminas
Uma espécie de ermo se arma para receber a narrativa de Navalha, nova novela de Demétrio Panarotto, um ermo que possui a ressonância de um sertão onde germina uma cidade como outra cidade qualquer e, dizendo isso, é bom lembrar que o sertão também não é somente o do imaginário popular agreste e distante. Sertão é logo ali onde uma aridez se instaura na comunidade, onde se reproduz a desdita gravada sobre nós pelo biopoder como se marcasse couro de gado lá no longe. Preste atenção que por vezes o ar rescende à matéria queimada e não ouvimos a dor dos outros, olvidar agrava a gravidade dos acontecimentos.
Duas ideias de gravidade alinham os fios da lâmina de Demétrio. A primeira, como delineado acima, diz respeito às questões que afetam a democracia. Assunto que sempre está no desktop do autor em livros de poemas como Lotação (Medusa: 2018) ou nas performances dos festivais como o Pipa e nos Saraus Quinta Maldita. A gravidade dos fatos que inevitavelmente afetam a gravidade sobre os corpos. Para ler Navalha, gosto de pensar que Demétrio, leitor de Italo Calvino, ciente das orientações do autor de “Seis propostas para o próximo milênio” opera no seu texto a lição do mestre que ao escrever sobre a leveza, acerta que peso e leveza são duas vocações da linguagem literária, flutuando como poeira sobre as coisas e ao mesmo tempo, na ambivalência de alguns objetos artísticos, entrega o peso à linguagem que nos traz espessura, concreção dos corpos.
Essa tensão de forças poderias nos levar a ler a narrativa com as leis newtonianas ao lado pois as três leis se aplicam aos corpos e ao relato. A gravidade de algum modo resulta de fatores inerentes as leis, o impulso de um corpo que salta, que sai da inércia que ocupa os espaços das ruas de uma cidade. Assim, em Navalha o acontecimento passa pelas quedas praticamente inexplicáveis de corpos e como esses corpos movem os relatos dos viventes (leia-se personagens) da novela. Novela bastante fragmentada, talvez por ser difícil escrever sobre a gravidade dos fatos ou sob a pressão das ameaças contra a democracia. A concretude dos corpos que caem preocupa o autor desde seu volume de narrativas Ares-Condicionados (editora Nave: 2015). Neste livros aparelhos despencam dos edifícios, corpos misteriosos surgem diante das partas de apartamentos forçando moradores a passarem por cima dos corpos, só isso, passam por cima e só. Temos nesse autor uma simpatia pelo non-sense, pelo sarcasmo que é quase um programa de vida do próprio autor em suas canções, ou películas.
Em latim, fábula é uma história curta. Como se nos imiscuíssemos nessas vidas curtas como um documentarista do naipe de Eduardo Coutinho, entramos com o narrador de Navalha nos laivos de vidas que, todavia, vibram entre os acontecimentos da pacata cidade impactada pelas quedas dos corpos. Alerto, no entanto, que há outra ‘câmera’ ligada cujos frames trazem as tramoias das repartições públicas e outros ambientes frequentados pelos oportunistas que aproveitam tudo, para capitalizar estratégias de poder. Vale lembrar de um filme bem popular e recente que ecoar com o que vem entre as páginas, me refiro a “Don’t look up”. Não apenas pelos corpos que caem, mas pelo fato de que a catástrofe sempre serve a alguém que anda no gume da faca, uma faca que se tratando de política sempre corta em ambos os lados.
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