Odisseia Tec – Uma crônica poética de Anna Maria Moura
Anna Maria Moura é Graduada em Teatro com ênfase em Iluminação Cênica pela Universidade do Estado de Mato Grosso (2019). Graduada no curso de Comunicação Social com habilitação em Radialismo pela Universidade Federal de Mato Grosso (2023). Atualmente é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Cultura Contemporânea e desenvolve pesquisas a respeito da literatura e audiovisual negro.
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Odisseia Tec
Na região onde cresci, zona norte de Cuiabá, região da grande Morada da Serra, o primeiro televisor que adentrou em minha casa era uma de quatorze polegadas, que chamávamos de TV à tubo, este aparelho por intermédio de um cabo captava a frequência das antenas emissoras de sinal aberto.
Entre desenhos animados, programas de auditório para todos os públicos, também havia os contos de fada e histórias de ninar gravadas em fita K7. Fora os almanaques de quadrinhos, charges e tirinhas. As telenovelas e suas convergências com jornais, revistas e locuções radiofônicas, sempre me despertaram interesse sobre o campo da realidade e o ficcional. A experiência midiática surge em mim bem antes das imagens projetadas nessa caixa mágica.
Em São Félix do Araguaia nos passeios de férias, éramos acordados com o cheiro do chá de capim cidreira e do bolo de chuva da minha avó Maria Luiza, era ela quem ligava o rádio para ouvir moda de viola caipira e não havia muitos ruídos para além do galo cantando. A antena de transmissão da rádio estava há uma cerca de distância e o locutor sempre mandava um abraço para a gente que fazia vizinhança com o seu quintal. À sombra dos pés de manga, seja na junção das folhas quedadas ou na brincante alegria de se esconder entre os galhos até quase alcançar a copa da árvore, era quando as frutas mais maduras se punham enamoradas que pedíamos músicas direto no balcão de atendimento da emissora, para embalar os doces sonhos. Num desses passeios, lembro de conhecer o interior da sala de transmissão da Rádio. Me encantei com a quantidade de discos de vinil e achei muito moderna toda a estrutura.
O retorno à Cuiabá era marcado pelo estalar do sino que surgia junto a aurora. Aos finais de semana, o rádio arranhava uma partida de futebol. Uma missão impossível era acertar o resultado de uma partida sem o entendimento das regras do jogo, era quase como escalar um time somente de atacantes. O advento televisivo possibilitou idolatrar títulos e personalizar um time em um único jogador: O camisa 10! Nas telenovelas havia também a representação de um molde que fosse coerente ao bom, ao mal e o feio. As vilãs e sua maldade inata, a ingenuidade do caráter ético das mocinhas e o fuxico sobre a vida dos famosos eram ingredientes de sucesso para uma boa trama. Minha mãe reconhecia todos os atores em cena, e os chamava pelo nome próprio ao invés do nome do personagem e isso me impressionava bastante. E nós cantávamos as trilhas sonoras das novelas, às vezes trocando uma palavra ou outra por uma que encaixasse melhor no nosso vocabulário.
Tinha sempre uma irmã dela que me conduzia à escola, lembro de algumas idas serem animadas pela turma do Fundão que tocava samba e pagode dentro do ônibus. A afinação dos instrumentos da fanfarra era ali mesmo no aperto da linha Estrela D’alva. Algo que toda a família gosta é de parodiar e contar anedotas do cotidiano. Há estórias que ainda nem foram escritas, mas são contadas desde antes da vinda à Mato Grosso: A fuga dos meus avós para o Araguaia; O irmão do meu avô que estava desaparecido no Tocantins; O conto do doce de abóbora e de coco que substitui o quitute de goiabada em casórios.
Na vida, eu sempre fui um pouco Macabéa, meio café frio, meio pavio curto. Era a neta caçula e os mais velhos sempre me aprontavam alguma peça. Mas ai de quem chamasse de perna de pau e encostasse um dedo na “bonequinha” da Vó. Dona Maria Luiza é minha avó e também é costureira de mão cheia, com lavagem de roupas “prosotrosos”, à beira do rio Araguaia, criou os filhos e netos. Ela é irmã das Três Marias: das Graças, Félix e a finada Maria das Mercedes.
A beira do rio, para além da pesca, insurge as antigas lendas da mitologia e folclore brasileiro: O boto cor de rosa, a vitória Régia e a cabaça que despertou a noite e as estrelas assim como a televisão reluzia pra mim as atrizes do horário comercial. Enquanto o mundo lia códigos e condutas, eu fazia a leitura de rótulos, embalagens, caixas, letreiros de lojas, manuais de instrução e quantas mil vezes mais a mesma história.
Havia um encantamento pela forma das letras e pelo brilho dos letreiros ao anoitecer. Uma satisfação enorme em desmontar objetos e dar-lhes outra utilidade ou serventia alguma.
A primeira caneta sob o meu manuseio respingou na epiderme e desde então a escrita para mim é como uma bala à queima roupa ou um prazer à flor da pele. Antes da escrita, as ondas sonoras eram responsáveis pela assimilação de sentidos, e quando se mora em um eixo familiar distante, a experiência de encontro, antes das férias, ocorria em cabines telefônicas da avenida Barão de Melgaço.
O transitar até centro da cidade era litúrgico como toda missa ao domingo de manhã. Adentrar a estação telefônica era quase que uma aventura futurista: Azulejo e paredes em tons de branco, as lâmpadas em tubulares quase azulava a visão em contraponto com a poeira vermelha de onde vínhamos semanalmente. Eu sempre dormia na ida e o percurso sempre parecia mais longo. Ao chegar comprávamos as fichas para alimentar a comunicação.
A primeira estação telefônica, no bairro onde moro, era um orelhão no centro comunitário isso significava um avanço tecnológico, que seria o início de uma era de telefones residenciais, banda larga, internet, fibra ótica em casa, smartphones e tudo mais que se dizia da comunicação globalizada, mas pra mim, significava apenas que a viagem futurista seria cancelada em pró da organização arcaica de esperar na fila pra ouvir a voz distante de algum ente ausente e lembrar de economizar fichas para o próximo encontro. Toda organização tem seu fim ou um novo recomeço, mas ainda há quem espere uma chamada ao lado de um orelhão na esquina?!
Quem diria que, nos dias de hoje, poder identificar quem nos liga serve de esquiva até quando um cobrador quer negociar as dívidas. E a Macabéa dentro de mim até se acha um pouco “esperta” quando ocorre.
Seja por ligação, telegrama ou e-mail, há eventos que ocorrem uma vez no ano e onde apostamos todas as fichas. Em mim, a grande aposta era no poder das imagens: Fiat Lux e por uma brecha da janela do quarto, assim que o sol se colocava à mostra, os transeuntes a caminho do ponto de ônibus projetavam-se em sombras de ponta cabeça, experiência semelhante ao primeiro equipamento fotográfico que segurei e que ainda era preciso levar os negativos para revelação.
O processo fotoquímico de revelação me fez atravessar por volta de uns seis semestres o bloco do Instituto de Ciências Exatas e da Terra buscando explicações sobre as imagens em ponta cabeça, memórias visuais e preparo de soluções reveladoras. A forma diluída em que encontrei as informações, me fez voltar atrás em sete casas onde me matriculei no curso de Comunicação Social no Instituto de Linguagens. Lá, a sensação de registrar momentos históricos (ou não) através das imagens me fazia sentir um pouco o Buscapé em Cidade de Deus. Às vezes até um pouco semideus aprendiz de feiticeiro, desenhando com luz pontos de história. Veio a primeira câmera digital em mãos de lentes fixas, de lente móvel e mapas de luz para espaço cênico e o digitar na mesa de iluminação na Escola de Teatro tornou familiar a ilha de edição, onde um fade in e/ou fade out recorta, aponta, inicia ou finaliza uma cena em caixa cênica.
E o poder de manusear as imagens e descrevê-las por meio das sensações que recordo, possibilita talvez transformar minha elucidação em um veículo, a partir do qual posso falar de onde venho, uma vez que, faço parte da segunda para terceira geração familiar a obter um diploma universitário, o que às vezes distancia a oralidade geracional da formulação científico acadêmica. Na tentativa de aproximar esses polos surge o ensejo de que minha postura como pesquisadora em comunicação tenha intersecção com o conhecimento popular, com os ritos festivos de encontro e com a construção de identidade.