Palavra sem paliativo: Entrevista com Hannah S. Lima
A poeta entrevistada deste mês traz na palavra a labuta e a denúncia. Noutros termos, sua escrita é “tiro, porrada e bomba” só que direcionados para o inimigo certo: o sistema que nos mata e nos adoece cotidianamente. Numa sociedade criadora de urgências e aniquiladora de subjetividades que vive receitando paliativos para continuar extraindo nossa mais-valia, ela é rebeldia sexual-materna-motriz compreendendo na raiz os nossos adoecimentos socio-existenciais.
Hannah S. Lima é mulher cis, branca, bissexual, mãe e feminista classista que mora na periferia da cidade de Petrolina/PE. É graduanda em psicologia e ciências sociais e membro da coletiva Vozes-Mulheres: Além das Margens. Sua escrita está para além das definições do que é ser e do que é escrever. Ela traz para os seus poemas, marcados pelo confronto às opressões do capitalismo patriarcal e às estruturas tradicionais que nos fragilizam, o grito de quem não se rende às normatizações anuladoras e ainda alimenta sonhos de um viver mais pleno e justo. Acreditar é sua rebeldia.
ER – Como foi o seu contato inicial com a poesia? Como ela se interliga a outros processos criativos e produtivos, em suas vivências?
Meu contato inicial com a poesia foi através dos meus pais, pela minha família ser composta por professoras, acabei sempre tendo contato com livros… Acho que meu processo criativo se cruza com outros processos, o primeiro com a destruição dessa ideia de A MULHER, quando a gente percebe todo o construto social que alicerça o gênero, isso traz posturas e experiências incontornáveis. E depois com o fato de ser mãe, isso dita o rumo da produção, isso interliga universal-particular-singular; o que escrevo é o que vivo. Eu acredito que meu processo criativo é um relato. Um relato de mais uma sobrevivente na periferia do capitalismo dependente, um relato de alguém que sonha e tem a utopia concreta de um mundo melhor.
ER – Enquanto mulher ribeirinha que escreve, pesquisa, estuda e cria, quais desafios você enfrentou – ou ainda enfrenta – para reconhecer-se como poeta/ pesquisadora/acadêmica e expor suas produções?
O primeiro é o entendimento de ser poeta e a não necessidade de um livro publicado para me enxergar assim. Há ainda aquela ideia de desvalorizar aquilo que se escreve, a baixa autoestima intelectual, acreditar que precisa devorar mil livros do cânone para ser reconhecida, ou que necessita se encaixar num tipo de texto, num tipo de gênero ou ter uma rima assim assado… Por sermos permeadas de referências masculinas acreditamos numa performance cheia de requisitos… Desmontadas as armadilhas, aponto a importância de estar em pares, dos grupos, das coletivas; o maior desafio é reconhecer o valor da nossa escrita, é ultrapassar o silêncio ou os cadernos guardados na gaveta.
ER – A partir das suas experiências literárias como você analisa a inclusão da mulher artista em espaços e eventos culturais?
Temos percebido uma maior inclusão nos espaços, mas me incomoda um pouco que a maioria desses espaços são para falar sobre “literatura feminina”, como se não pudéssemos construir outros assuntos, reduz-se as participações a uma certa ideia de conteúdos destinados àquela identidade, sendo que é muito mais complexo, somos mulher e… uma variedade de coisas, gostos, ideias, lugares, fronteiras, raças, orientações sexuais e etc. Essa atitude reforça um protótipo, uma cartilha sobre o que escrevemos, reduzindo a uma perspectiva muito normalizante, acho que produzimos muito mais. Muito além. É uma via que transcende “ser mulher”, é a criação de novas vias, é uma destruição de qualquer ideia de ser mulher.
ER – Na nossa existência há sempre algo que nos move, balança nosso pensar e existir… O que move a sua produção artística? De onde ela vem?
Ela vem da desigualdade, da patologização, do adoecimento, do desvio da norma… é movida pela necessidade de furar a bolha do realismo capitalista. Acho que ser anticapitalista, e aqui estou falando de um posicionamento que transgride o sentido estritamente econômico, move minha produção, a forma como vivemos – se é que vivemos – é horrível, a banalização da existência, a nossa hiper exploração, as condições inóspitas, o aumento do discurso neoliberal e seus impactos na nossa subjetividade… é isso que move minha escrita, é aquilo que perfura a carne. Estamos cansados, nos apegando à arte para sobreviver. Escrevo para lembrar que há algo, que há sonho… para lembrar que chega de paliativo.
ER – Pensando nesses movimentos da própria existência e das palavras, para onde você deseja que vá a sua arte?
Confesso que nunca havia pensado nisso. Minha relação com a escrita é meio egóica. Escrevo para elaborar a experiência, um processo mais autocentrado. Mas, refletindo aqui… espero que chegue para aqueles que estão fartos das coisas, para aqueles que estão cansades… quero que estas pessoas saibam que não estão sozinhas.
ER – O que você pensa acerca dos coletivos, confrarias, agrupamentos de mulheres artistas, das mais variadas linguagens, que investem em pesquisa/criação/produção/publicação coletiva, exclusivamente de mulheres? Você conhece algum(ns) desses coletivos de mulheres? Quais?
Velho, acho sensacional, do caralho. Quando nos reconhecemos como mulheres, percebemos o quanto de tempo investimos em trabalhos invisíveis, trabalhos para a reprodução social, para manutenção da vida; coisa que outra semelhante compreenderá. Muito mais que tetos só nossos, estamos criando uma rede de afeto, acolhimento e possíveis tensionamentos; é nesses grupos que vemos o quão diferentes somos, o quão vasto são nossos atravessamentos. É um processo que fortalece nossa autoestima, várias vezes estar em grupo foi o que me fez valorizar minha voz, foi o que evitou arquivar uma série de poemas.
Conheço o Vozes-Mulheres, que faço parte, uma coletiva aqui do Vale do São Francisco, que é mais que compartilhar escrita, é um lugar que nos valida, que constrói pontes, que potencializa nossas vozes.
ER – O sexismo e o machismo têm, ao longo dos tempos, desenhado os papéis sociais de homens e mulheres, inclusive na Literatura e nas Ciências. Você já teve sua existência e/ou escrita impactada por ser mulher? De que modo?
A mulher ao ser relegada à esfera privada, teve toda sua existência trancafiada; e acho que isso nos coloca no lugar da pessoa que deveria ater-se aos assuntos mais dóceis, pueris, isento de violência, morte e sexo; é a ideia do ser dessexualizado, apático e sem voz. Contraditoriamente, desde o furo da orelha até outros lances o que vivemos é violência. E minha escrita é justamente uma síntese entre privado e público, é sobre luta de classes, é sobre viver num país com altíssimas taxas de feminicídio, é sobre ser mãe e ser estudante, é sobre ser trabalhadora, é sobre mandar pro brejo qualquer roteiro, ou seja, é relatar minha história atravessada pelo patriarcado e mais.
ER – Como mulher que faz e vive arte, quais seus desejos e planos para os dias vindouros?
No que tange a escrita, pretendo me organizar para jogar um livro no mundo e construir mais espaços, projetos e trocar ideia com outras mulheres.
ER – Considerando seus estudos na área de Psicologia e todo o seu processo criativo, como você analisa os efeitos do patriarcado sobre a existência das mulheres e suas produções artísticas, principalmente daquelas que se desdobram entre a maternidade, o trabalho, os estudos e as artes?
Nós mulheres somos as responsáveis pelo trabalho de manutenção da vida, pela reprodução social, e isso tem tamanho impacto na nossa saúde mental. A escuta dos profissionais é imbuída pelo machismo, e isso acarreta em naturalização do excesso de trabalho, na cobrança e autocobrança sobre a maternidade, o casamento; sobre a cobrança de uma performance; e tudo isso é visto pelo prisma biologicista, “sente isso porque é mulher”; alguns autores já falam sobre o gendramento dos sintomas; isso se soma ao neoliberalismo e temos uma acentuação na banalização da vida, na medicalização exagerada. Fora a narrativa que nos dita o tempo de fazer certas coisas, nós mulheres sentimos que estamos sempre atrasadas, que perdemos o tempo; mas, nunca nos lembramos que nosso tempo é de todos, para todos, para manutenção dos trabalhos reprodutivos e nossos projetos acabam sempre postos em segundo, terceiro plano… Então, acho que devemos sempre lembrar que o nosso tempo é o agora, não isso de velha demais ou etc; sobre conciliar maternidade, trabalho, estudo, artes e etc., é ter em mente que fazemos o impossível, que devemos rasgar protocolos, regras, manuais e continuar seguindo nosso desejo, lembrando aos nossos filhos que não nos anularmos é importante e essencial para uma maternidade real, para promoção da nossa saúde mental, dos nossos vínculos e para além de aspectos individuais, é pensar em meios coletivos que possibilitem existir, desejar e sonhar. ]
Por transitar tão bem entre os universos da Literatura, Ciências Sociais e Psicologia, além das leituras críticas que fez e faz desde miúda, sobre as lutas de classe e os feminismos, Hannah já conhece bem das artimanhas do sistema patriarcal/neoliberal para nos manter silenciadas, exploradas nas múltiplas esferas e desacreditadas do nosso potencial. Em sua poética cortante e insubordinada, a poeta ribeirinha também questiona a categorização de “A Mulher”, como se fôssemos únicas, seguindo um único modelo de ser, pensar, (não)agir, tal qual os objetos fabricados nas linhas de produção:
mulher:
substância dissolvida.
dissolvida na maternidade. na cobrança acadêmica de ter o tempo
dos homens. dissolvida na não-possibilidade.
mulher-mãe:
substância dessexualizada.
dissolvida na não-possibilidade de escolher.
Assim como a luta de Carolina Maria de Jesus e as que sucederam, a vontade utópica de escrever e ocupar as histórias da literatura abriram o portal para que os sonhos da periferia, especificamente da mulher preta periférica escritora, não se perdessem jamais através de seus desabafos poéticos e escrevivências. E como elas e Hannah Lima, temos consciência que toda essa história da luta das mulheres pela e para as mulheres, tem nos levado a conquistar muita liberdade. Agora podemos falar e queremos decidir sobre o que falar; compomos mesas acadêmicas, mas queremos ser pagas tanto quanto os homens, nesse mesmo contexto; publicamos livros e antologias, mas queremos nossas produções na íntegra, sem censura; deixamos de ser a musa, para sermos a criadora; acolhemos poetisas, mas nos reconhecemos e reivindicamos que nos chamem de poetas, pois assim como disse Alice Ruiz se for pra botar gênero, os homens que se mudem e se tornem poetos.