Sobre lutos e lutas – Por Aline Wendpap
Na coluna mensal “Sonora”, Aline Wendpap escreve sobre cinema e audiovisual, dedicando-se principalmente a tessitura de textos críticos, com ênfase na produção mato-grossense, nacional ou ainda latino-americana. O título da coluna visa brincar com a palavra, que tanto é ruído, quanto pode ser uma conversa ou um som bacana. Não deixa de ser uma homenagem ao som, característica vigorosa do cinema, além de se parecer foneticamente com Serena, nome de sua bebê. A coluna irá ao ar sempre no último domingo do mês.
Aline Wendpap é cuiabana “de tchapa e cruz”, nascida em 1983. Primeira Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pelo PPGECCO da UFMT, Mestre em Educação pela mesma Universidade, Bacharel em Comunicação Social – Habilitação: Radialismo (UFMT), integrou o Parágrafo Cerrado, coletivo dedicado a leituras de cenas de espetáculos. É autora do livro A Televisão sob olhar das crianças cuiabanas (2008, EdUFMT).
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Sobre lutos e lutas
As memórias que eu não queria ter
(Produção FilmeSimples. Direção Coletiva. Rondonópolis. 2021. Drama. 13m.)
Este curta de ficção gravado em Rondonópolis-MT, apresenta um pai e uma filha cingidos por memórias de duas mulheres, cujas ausências os aprisionam ao passado e lhe tiram a vontade de viver.
A produção realizada a partir do Projeto contemplado pela Lei Emergencial Aldir Blanc através do Edital Nº 001/2020, da Secretaria Municipal de Cultura de Rondonópolis recebeu o título de “As Memórias Que Eu Não Queria Ter”. Tal empreitada reuniu artistas independentes locais, que fomentam a produção cultural, no setor audiovisual/cinema na região.
A direção é assinada coletivamente entre a produtora filmesimples e o grupo CorpoAnu, e, funciona bem, pois o ritmo da trama empolga e prende o espectador, apesar de haver momentos, um tanto quanto, desnecessários, como o acompanhamento visual da caminhada do pai até um túmulo, já que neste percurso nada acontece, ou melhor, destoa um pouco do estado depressivo apresentado por ele nas cenas anteriores, pois o seu andar é muito rápido, como se estivesse com pressa de chegar. Porém, uma vez no local, a cena não se desenvolve. Ele só fica lá olhando a foto, não chora, não fala nada. Nós, enquanto espectadores ficamos esperando algo mais, que não vem. Diferentemente disto, as imagens dele no ônibus e sentado no banco da praça servem para nos mostrar a angústia e a saudade sentidas, mas essa caminhada apressada não fez sentido, pelo menos para mim.
A trilha sonora original de Felpz, Flávio Pereira e o som direto (captado por Cássyo Ander) colaboram com a direção, no sentido de imprimir o ritmo do filme, em alguns momentos somos levados a pensar que se trata de um suspense, todavia, isso traz uma diversidade de nuances possíveis ao filme e colabora para sermos mais capturados pela trama.
Esse pai, que vive em função da memória de um amor, que depois descobrimos ser “clandestino”, ganha vida por meio de Marcos Leque, aliás, devo dizer que sua interpretação emociona. Como já conheço seu trabalho, principalmente com comédias, no teatro, posso afirmar que ele se superou neste papel denso e dramático. A cena em que ouvimos as vozes da sua cabeça, nos mostra o quão difícil tem sido para esse homem lidar com os conflitos internos, e, quando ele se tranca no quarto, após a interrogação da filha perguntando o que ele tinha, acompanhamos a difícil decisão de seu personagem, que parece optar pela sensatez e amor fraternal, apesar de toda falta sentida da amada e da complexidade dos seus sentimentos, que indicam inclusive uma possível patologia psíquica.
Enquanto o pai sente a morte da amante, a filha (Camila Pinho), sofre pela perda de sua mãe, o que só descobrimos um tempo após nos depararmos com essa personagem, muito convincente inclusive. Essa surpresa é um ponto forte do roteiro e da direção, que nos deixa primeiramente com uma ideia e depois apresenta uma reviravolta muito interessante. Reviravolta essa conectada intrinsecamente com a personagem, da atriz convidada, Juçara Naccioli, que com seu sorriso envolvente, nos proporciona os momentos mais leves, românticos e ternos do filme.
Não fica claro, mas pelas imagens desérticas das ruas e pelo contexto social vivido entre 2019 e 2021, pode ser que as duas personagens mortas, que aparecem como lembranças assoladoras dos protagonistas tenham sucumbido à pandemia de COVID-19. E o estado depressivo de ambos, mais o cuidado do serviço de psicologia, que liga para a filha convidando-a para mais uma consulta, são elementos que nos indicam se tratar deste tempo que gostaríamos que estivesse muito distante, mas que infelizmente é parte do nosso presente estendido.
A fotografia, concebida e assinada por Íris Alves Lacerda, me remeteu a Manoel de Barros, pois ao mesmo tempo em que é sofisticada, vê e mostra, a beleza no singelo. Uma das cenas que mais me chamou a atenção, para isso, foi a externa noturna, da casa dos protagonistas, quando o pai chega do supermercado. O âmbar, que vemos pelo empoeirado da casa também denota o exímio trabalho de cor, este realizado por Isabela Padilha.
O filme ainda está circulando por festivais e mostras, assim, não é possível vê-lo em alguma plataforma neste momento, no entanto, em breve deverá ser disponibilizado ao público. Recomendo fortemente que vejam essa produção, até para poderem formar suas próprias opiniões a respeito dela e da cena audiovisual mato-grossense como um todo, que também enfrentou seus lutos, mas sem perder a ternura, continua na luta.