Um ensaio de Pedro Henrique Corrêa Guimarães
Pedro Henrique Corrêa Guimarães. Advogado e professor universitário. Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás. Autor do Livro Tempo da Palavra: um estudo sobre as confissões de Agostinho.
***
Pintura Abstrata e Poesia Concreta: A natureza entre o ponto e linha
1º Prelúdio
Por esta relação cravada em minha pele, nestes dois polos do indizível, que operacionalizam o transbordo da linguagem para além do significado imediato. A pintura e a poesia inscritas como arte do pontual. Tudo começa num ponto – de uma qual linha que os une?
A arte abstrata que constrói sobre a desconstrução do olhar, a poesia concreta que se constrói sobre a desconstrução da palavra. A pintura e a poesia como arte do instantâneo forçada a ser a arte da demora – a demora sobre a forma.
A poesia concreta que é a pintura da palavra, a pintura abstrata que é a palavra da pintura. A poesia concreta reivindica a palavra enquanto forma, enquanto desenho. A pintura abstrata reivindica a pintura enquanto forma, enquanto conceito.
Elas se declaram como um manifesto. Elas são feitas para ser um manifesto, tal qual um manifesto. Haroldo e Augusto de Campos [1], além de poetas concretos, são [ou foram] grandes ensaístas, grandes teóricos de uma nova forma de fazer poesia. Wassily Kandinsky [2] e Piet Mondrian [3], além de grandes pintores abstratos, foram teóricos de uma nova forma de apresentação de imagens.
Pois, toda transformação é um contínuo movimento entre o fazer e o dizer, como extravasamento entre teoria e práxis. A teoria se torna uma práxis.
A pintura é o movimento do ponto, tal qual o poema é o movimento da letra. É um movimento que é uma dobra, um corte.
Pintura abstrata e arte concreta que estabelecem com área aberta a um diálogo com outras formas de arte. A pintura com música em Kandisky, a poesia como escultura nos poemóbiles de Augusto de Campos. Tensões internas que projetam conexões, em busca da arte total. Arte total não como totalidade das artes, não como redução da arte a um único projeto, mas arte total enquanto a totalidade das formas que a arte, ela mesma, reivindica.
Porque, ao fundo, sabemos que toda pintura é abstrata. É abstrata porque é uma composição de ângulos, cores, paisagens, pessoas, formas. E ao fundo, toda poesia é concreta, porque ela é corpo, ela é ritmo, ela é a forma brutalista da linguagem dita por si.
E, aqui, não poderia dizer sem paralelismo, o paralelismo poético, o paralelismo visual. As paralelas que só encontram no infinito do moto-contínuo da vida.
2º Prelúdio
Por outra linha, outros conjuntos de pontos, a poesia concreta e a arte abstrata desconjuram o natural. É o natural, da língua e da imagem, que esses movimentos propõem desnaturalizar. Porque, o real não é natural, numa contralinha hegeliana.
O realismo naturalista fora a linha mestra de toda a história da Arte. Desde o início na antiguidade com a representação do corpo no teatro, passando pelos bustos egípcios e romanos e desembocando nas cenas bidimensionais da pintura religiosa medieval. Mas sempre ali um fundo, a arte como imitação. Até mesmo o impressionismo e o expressionismo no final do século XIX mantinha a representação do natural, da natureza, ainda que a linha e as cores não sejam a do puro realismo.
É no século vinte e seu vanguardismo que põe a linguagem no limite com a poesia concreta, e a imagem no limite com a arte abstrata. É esse limite do ponto e da linha que conclama uma segunda natureza, uma outra natureza.
1º CENA
Passamos a primeira cena, um poema de Augusto de Campos inserto em seu livro Não poemas. O ícone da poesia abstrata no Brasil relê, Paul Valéry, poeta francês, a partir de um profilograma. Esse poema simboliza o concretismo poético porque contém a metalinguagem poética, o paradoxo, a decomposição linguística.
O que era frase em Valéry vira imagem em Augusto de Campos – uma imagem cifrada, dividida em segmentos de três letras. Como uma linha. As letras são os pontos de uma linha. Ou seja, letras como linhas, palavras como pontos. Não seria uma linha, mais uma linha entre a poesia a pintura.
O que era desejo em Valéry, vira a êxtase do paradoxo em Augusto de Campos. O poema é um paradoxo que não se desvela no primeiro olhar. A poesia é a potência que fica contida na palavra cifrada. A poesia exige a demora do olhar. Ela não é, ela pode ser. Por isso, “não ser poeta, poder ser poeta”.
A tipografia do poema também deixa a mostra essa linha interna da composição, como à espera da decomposição. A linha branca que atravessa as letras é a o vazio à espera da poesia.
Augusto de Campos imagina assim a linguagem num estado de permanência, à procura do seu sentido, nas berlindas de suas contradições. O poema é uma imagem a ser lida.
2ª Cena
A segunda cena é talvez a pintura mais conhecida de Wassily Kandinsky “Jeune-Rouge-Bleu” (1925), exposta hoje em Paris. É um estudo sobre as linhas e as cores, sobre o ato de compor. O amarelo e o vermelho que se decompõe em azul sobre os cantos da tela.
A pintura é uma abstração lírica, que expõe as lições do próprio pintor em O espiritual na obra de arte (1910). As partes se opõem mais há um equilíbrio de elementos e formas geométricas – o retângulo, o círculo, o quadrado.
Kandinsky desenha o próprio movimento da criação, numa cena de metalinguagem. A pintura é a imagem de seu manifesto artístico. A pintura é um poema visual. Movimento de construção que tensiona a contradição das cores e das formas. O quadro possui a intensidade de uma tela impressionista e a grandeza épica de uma tela renascentista. Kandinsky relê a tradição.
Fechamento
Linhas e pontos da poesia concreta, essa desnatureza (parafraseando Caetano Veloso) que conclama a metalinguagem, o paradoxo e põe em jogo os limites da imagem e da palavra. Esse jogo de vanguarda que sub-roga o conteúdo pela forma. Esse jogo, que brevemente aqui podemos, numa pequena linha relatar.
Notas
[1] V.g. Teoria da poesia concreta (com Décio Pignatari e Haroldo de Campos), 1965; Poesia antipoesia antropofagia, 1978; A arte no horizonte do provável (1972).
[2] V.g. Do espiritual na arte (1911); Ponto e linha sobre o plano (1926)
[3] V.g. Neoplasticismo na pintura e na arquitetura.