Relicário
São quatro da manhã, jogada no sofá recapitula todos os momentos vividos a dois, lembra até hoje do primeiro beijo no coleguinha de quinta série e de como ficou ruborizada quando percebeu que toda a sala assistia a cena no pátio do colégio. Depois daquele dia, sempre que fica envergonhada, seu rosto enrubesce e ela queima por dentro.
Letícia sempre foi uma menina carregada de romantismo, desde de muito pequena rabiscava poemas em seus diários, se apaixonava pela história dos casais no cinema e sonhava acordada com momentos que talvez nunca viveria. Marcada para viver de amor, nunca soube muito bem como domar seu coração, era sempre um deus nos acuda quando sentia o estômago invadido por borboletas. O medo vinha e ela não sabia se conter, ela nunca queria se conter. Talvez por achar que não fosse necessário se privar de histórias de amor, talvez por acreditar que tudo é possível.
Do primeiro namorado guarda até hoje o apreço por blues. Ria da desenvoltura e do carisma dele, mas não tinha certeza se aquele sentimento era suficiente e talvez por isso o relacionamento tenha sido tão passageiro. O primeiro amor é objeto sagrado, de onde as mais belas recordações passam em sua memória como em seu filme favorito, talvez tenha sido o maior período de paz em sua vida. Veio o casamento, o fim da faculdade, alguns sonhos se perderam pelo caminho e ela não sabia que rumo tomar. O ex marido a dava toda a segurança emocional que necessitava, mas seus toques não faziam vibrar sua alma e ela sentia falta de se sentir viva. Abandonou casa, cidade e a possibilidade de construir uma família pela oportunidade de sonhar de novo.
No rádio velho Cazuza canta a plenos pulmões a declaração que tem tentado esconder, logo ela que nunca foi de guardar emoções em esconderijos, tem preferido a solidão reflexiva de quem deseja em segredo ao caos de se mostrar por inteira. O tempo passa arrastado e o sono não dá sinal de existência, levanta como quem procura um abraço para fazer morada. Já não a importa que a efemeridade seja marca das relações amorosas, gostaria de por pelo menos um segundo mergulhar naqueles olhos de poesia com todos os perigos que isso poderia representar. Sente-se a todo momento invadida pela sua ausência, a falta da pele dele e o calor excessivo que tem feito no verão a impedem de relaxar.
A água gelada percorre seu delicado corpo, se encara no pequeno espelho na parede, sabe que a beleza não é sua maior aliada e que o encanto para ser despertado precisa de alguns defeitos humanos. Na maioria das vezes se sente como a mesma menina perdida de anos atrás que poetizava até suas maiores dores. Tenta contabilizar em seu olhar todas as sombras de amores passados, encontra a beleza de histórias findas. Acredita que viver um amor do começo ao fim é a real visão de eternidade. São essas pequenas doses de memórias que a fazem ainda acreditar em amores impossíveis.
Caminha nua pela casa deixando um rastro da água que ainda percorre seu corpo, junto escoa seu coração e todas as pequenas delicadezas desse amor recente. Não gostaria de classificar esse afeto dessa maneira, vive em eterna dualidade sobre entregar-se ao desconhecido e mais uma vez arriscar-se na aventura que é pertencer a um coração ou trancar todas as portas e janelas e proteger-se de qualquer dor.
Talvez fosse melhor confessar tudo que a transborda somente ao seu diário, fazer daquele amor um relicário junto com seus tesouros. Existe um lugar especial para o desejo por ele bem ao lado das conchas mais bela que recolheu naquela praia deserta. Inventa o codinome mais doce que ele possa merecer e dedica algumas linhas de um poema.
“A doçura dos seus olhos
invade meus pensamentos
Minha mente
moradia de delicados desejos
habitada pela leveza da sua voz
E por mais que seja uma ilusão sincera,
sou alguém que não tem medo de sonhar”
O dia está quase amanhecendo, desde que decidiu abandonar a cidade grande e viver na praia é quase ritual ver o sol nascer. Sai de casa vestindo melancolia e saudades, os pés descalços trilham o caminho de quem resolveu carregar em seu coração algumas relíquias sagradas e fazer delas alimento de seus sonhos mais singelos. Observa a rebentação das ondas, quer ter a coragem de se entregar ao amor como tem de se entregar ao mar. Ali, naquele pequeno momento de milagre, invadida pela brisa e pela força do mar, descobre que amar é mergulhar em imensidão.