Um conto de Joe Sales
A coluna “Divagações de Joe” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna) foi criada por Joe Sales [Rondonópolis/Mato Grosso, 1991]. Poeta, professor de Língua Portuguesa e mestre em Estudos de Linguagem. Publicou cinco livros de poemas pela Editora Penalux: Porta Estreita (2014), Ao passo das horas e outro descabimentos (2015), Criticepopular (2015), Largo do amanhecer (2017) e Pelas luas: a mesma encruza (2019). Possui participações em várias antologias nacionais. Atualmente, desenvolve o projeto “leituras clandestinas” em que vozes convidadas dão vida aos contos do livro Clandestinamente.
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Tramela
“[…]
deus é a tramela que impede
o padecimento de ser atenuado
mas permanentemente se pede
sua intercessão e destrançamento”
Divanize Carbonieri
deu peso a todos que amou na merda com os pés na cabeça olhava para si sem encontrar nenhuma solução para desvendar sua tragédia pessoal estudou até o nono ano não teve vontade de seguir o ensino médio no comando vermelho encontrou outro mundo e foi se desligando viciando e sua família ficou para trás conheceu Beu sua namorada e juntos no crime foram adentro roubos disputas o caminho largo é espaço para o pecado lembrava-se às vezes da bíblia lembrava-se da mãe que era missionária teve uma noite em que quase caiu levou dois tiros sorte que um foi no braço e outro queimou só de raspão Beu manjava das coisas e o salvou seu pai nunca deu notícias era alcoólatra mas de vez em quando Augusta sua irmã pedia para que ele voltasse sua mãe tinha fé e repetia consigo mesma sempre o versículo ensina o menino desde cedo e ele nunca se apartará ela tinha no peito esperança e César seguia embrenhando-se naquela vida ele queria ser dentista para ajudar na comunidade mas na escola não ia bem os professores diziam que ele não daria conta tinha muita dificuldade com cálculos e a leitura passava longe de sua vida quando estava em casa tinha que ajudar a mãe e se sobrasse tempo podia soltar pipa ou bater uma pelada com os moleques e se não houvesse tiroteio ler era coisa que raramente se fazia na escola e uma leitura difícil de algo que não fazia sentido para ele até tinha curiosidade e achava bonito aquelas palavras que falavam de um amor tão profundo e pensava queria amar daquele jeito e falar do seu amor daquele jeito no entanto na escola não era considerado suas dificuldades somadas à indisciplina faziam com que sua imagem fosse a do que não tem jeito e assim chegou ao fim do fundamental e depois nunca mais pisou na escola conheceu Beu numa sexta-feira ela estava com uma vela vermelha na mão e dizia que tinha que entregar um presente à Maria Padilha o garoto mesmo assustado seguiu a moça curioso e enfeitiçado pela sua beleza e pensou ela é macumbeira Beu acendeu a cera na encruza e depois chamou César e os dois seguiram a noite inteira era a primeira vez do garoto depois veio as novas amizades a família a mãe percebeu que ele estava estranho não ia mais à igreja os seus olhos vermelhos em brasa não queria dizer não queria que fosse verdade e ele mesmo confirmou pegou suas coisas meteu pé na vida e o buraco no peito de sua mãe e de sua irmã as coisas estavam mais difíceis César descobriu que tinha HIV Beu tinha sido morta ele estava devendo e a polícia na sua cola pensou na mãe na irmã pensou no pai na escola no amor que desejou viver e o peso em seu peito César não aguentou meteu o 38 e seu sangue escorreu pela mesma encruza em que conheceu sua namorada