Um ensaio de Alexandra Vieira de Almeida
Alexandra Vieira de Almeida é poeta, contista, cronista, resenhista e ensaísta. Tem Doutorado em Literatura Comparada (UERJ). Atualmente é professora da Secretaria de Estado de Educação (RJ) e tutora de ensino superior a distância (UFF). Tem seis livros de poemas, sendo os mais recentes A serenidade do zero (Penalux, 2017) e A negra cor das palavras (Penalux, 2019). Publica regularmente em antologias e revistas do Brasil e exterior.
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O rio de símbolos linguísticos e sociais em Passagem estreita, de Divanize Carbonieri
O livro de contos Passagem estreita (Carlini & Caniato Editorial, 2019), de Divanize Carboniei, ricamente estruturado e elaborado minuciosamente com dedos de mestra das palavras, percorre o rio simbólico das criações da linguagem e das questões sociais que afligem as mulheres, principalmente. É forte, em alguns de seus contos, a presença da oralidade, a fala das periferias, das bordas, dos lugares estreitos. O padrão de beleza imposto à mulher, no âmbito da sociedade, é criticado de forma corrosiva pela tinta ácida de Carbonieri, que não poupa palavras para combatê-lo, com ironia e reflexão. No aspecto literário, a metáfora da “passagem estreita” serve para enfatizar a brecha, a fissura, o furo pequeno e necessário para que haja a comunicação do sentido do texto da autora para o leitor. O texto literário não pode ser inteiramente hermético. É preciso um buraco iluminado para que a luz do sol clareie os leitores sobre determinados significados. Assim, a dinâmica do chiaroscuro está presente em Divanize, ora escondendo, camuflando as passagens do labirinto, ora iluminando, revelando os símbolos da língua e de nossa sociedade opressora para seus leitores inteligentes, que devem percorrer esse rio com a canoa de um alfabeto enigmático, mas que contém nele as respostas às questões mais inusitadas.
Percebendo as dinâmicas sociopolíticas, a autora navega nas correntezas do feminino, revelando um feminismo engajado em nos fazer pensar sobre o poder dominante do patriarcalismo e de uma sociedade permeada pela estrutura masculina de sujeição da mulher. A submissão da mulher é criticada duramente e Carbonieri utiliza figuras femininas anônimas de nossa sociedade. Fala da mulher feia, da mulher gorda, da mulher negra. Ou seja, mulheres marginalizadas pelo padrão opressor de uma tessitura de ódio, que gera a violência e o feminicídio. A grande escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adiche, uma mulher emancipada e revolucionária, que discute o seu tempo em livros magistrais, em Sejamos todos feministas, disse: “Porque a ideia de mudar o status quo é sempre penosa”. Como dizia Guimarães Rosa que “viver é muito perigoso”, ser mulher nesta vida é uma ameaça à vida dos homens. Viver uma vida como um ser feminino é o perigo na nossa sociedade. A presença da mulher é intensa na obra de Divanize, que desestabiliza o jugo masculino pelo seu poder de invenção linguística e crítica social, que não deixa nada a desejar aos grandes escritores. Seu livro de contos é digno de receber vários prêmios, por sua urdidura criativamente costurada com perfeição literária, embora ela critique a perfeição e a harmonia impostas por um discurso machista, presentes tanto pelo senso comum, como pelo conceito, a partir da teorização literária, que nos impõe classificações taxionômicas e hierarquizadas. E é a partir da metaficção que ela consegue os seus mais belos efeitos e inventividade poética.
O livro Passagem estreita é composto por 19 contos. Analisaremos alguns deles para percebermos o teor imaginário original e reflexivo, nos encontrando com uma obra que se caracteriza por sua singularidade, fugindo de perseguir padrões identitários com outros escritores e escritoras, revelando-nos uma dicção particular. No conto que abre o livro, “Fia”, temos logo no início, a metáfora que vai caracterizar os espaços interior e exterior da personagem, a “porta estreita”, que a leva a um lugar mal iluminado, no início, antes de adentrar o recinto. A personagem é um elemento de repulsa e abjeção para o narrador e personagens, utilizando aqui Carbonieri a ironia tão peculiar nos seus textos, pois ela esconde uma crítica duramente elaborada pela sua artesania literária. A personagem é fisicamente feia e tem um intelecto estreito também. Não é uma pessoa harmônica e perfeita, como vista pelo narrador, mas que esconde, palimpsesticamente, uma reflexão corrosiva sobre os padrões do que é o belo nas sociedades humanas.
A escuridão inicial na porta estreita mostra a ignorância e a falta de discernimento nas quais o ser humano está encerrado, sem dar ouvidos ao que é diferente, singular ou tachado de feio pela norma aceita sem juízos mais críticos. A moral social é reinante e é hipócrita. A personagem é um mar turbulento, uma agitação que chacoalha nossa pequenez na urbe louca e alienada. As mulheres são padronizadas ao gosto masculino, necessitando ter os rostos belos e os corpos perfeitos. Fia é a imagem da desestabilização de uma estrutura imposta. A personagem desafia a razão, o raciocínio reinante. No livro A Ciência Nova, do filósofo italiano Vico, este dizia que a ironia surgiu na idade da razão. Há um choque aqui nesse conto, pois Fia é a imagem da desrazão e da falta de intelecto. Ela é o puro instinto. Para Fia, “o fragmento era a única ordem que ela conhecia”. A beleza é a ordem, o equilíbrio, estar imersa numa unidade, num todo indivisível? Fia era levada por sensações corpóreas. Pelo movimento, pela ação, pela energia. A presença do corpo é importante em Fia. A sensibilidade perfura os olhos da razão dominante. O espaço da luz, do sol, do filete estreito que percorre o corpo de Fia é o grito dos desvalidos, dos marginalizados em nossa sociedade brutal e desumanizada, apesar de uma razão aparente que se cobre com o manto de um intelecto preconceituoso e que revela o âmbito do que é falso e ilusório (pseudo).
Assim, temos os pares em Fia que não são opostos, mas que se embaralham e nos comovem, leitores atentos a esta narrativa excepcional: o físico e o mental, o exterior e o interior, a beleza e o intelecto. Divanize tem um estilo próprio assim como suas personagens que se apresentam como particularidades viscerais, o próprio de cada uma. O homem que está no interior do recinto que dá a Fia a embalagem de que ela necessitava é um dos muitos personagens que revela o discurso do poder, do dominador, do opressor: “Diante de tão insignificante criatura, elevava-se ao status de um semideus”. Num mundo tão pragmático e utilitário, como o nosso, Fia parece ser um produto descartável como o papel que envolve um produto numa loja. O que não é útil é o que não se encaixa nos padrões de uma sociedade que adoeceu. A falta de harmonia e equilíbrio em Fia é uma rica ironia para se falar sobre a falta de delicadeza em nosso mundo, que ao invés de ser humano, se traduz pelos fios da animalidade.
O poeta Rimbaud já nos mostrou num de seus poemas, que o feio pode ser esteticamente belo e iluminado pela pena da escrita. O feio também tem de ser visto e discutido. No poema do poeta francês, “Vênus Anadiômene”, o escritor ilumina esteticamente o que pode nos causar repulsa, como a personagem Fia, na obra de Divanize. E, para isso, a ironia tem um papel crucial na escrita de Carbonieri, que mostra uma crítica escondida na noite do tecido literário. O narrador não parece querer despertar compaixão e piedade em nós. Quer trazer, aparentemente, o asco, mas a ironia é o outro lado da moeda, trazendo a reflexão para o leitor. O narrador apresenta toda sua repugnância perante sua própria personagem, mas, ironicamente, tem o olhar ao revés, pois dedicou toda uma história, um conto para ela. O verso e o reverso são ambiguamente colocados lado a lado. E termina: “Mas que posso fazer se só tenho diante de mim o traste mais feio e estúpido que poderia existir no mundo da ficção?”
O conto “Correnteza” foi agraciado com o segundo lugar no Prêmio Off Flip de 2019 e é realmente um dos mais belos do livro, com uma imaginação fecunda e um lirismo encantador. A primeira palavra do conto já mostra se tratar novamente de uma mulher que terá uma recém-nascida ao longo da história. Aqui a maternidade, o lugar da mulher como mãe e seu poder de criação, de gerar a vida, a imaginação e, aqui, em Divanize, o texto: “Deitada no fundo da canoa, entrevia o nuançado cambiante do firmamento enquanto fechava e abria os olhos”. A imagem de uma mulher grávida no meio de uma embarcação é de uma poeticidade comovente, levando-nos às esferas inauditas da literariedade. O ritmo e a repetição são aqui também recorrentes, pois quantas outras antes dela passaram por aquilo que ela está passando, cativa de seu próprio corpo? Ela tinha uma “irmã de batalhas” que partiu para outro lugar. Com ela, aprendeu sobre “cavalos, garruchas e machos”. Suirami era o nome dela. Da irmã que se foi. Enquanto a personagem principal estava ali dando à luz, lembra-se de suas galopadas. Os cavalos são uma presença intensa no conto.
E o título do conto, “Correnteza”, é símbolo de purificação, de limpeza. O sangue é a imagem da vida e da morte. Ela queria se libertar dos odores do mundo. O homem não é visto aqui como aquele ser que é apenas detentor da procriação, como se a vida estivesse sendo gerada dominantemente por ele, a mulher é uma “pequena deusa” e conduz os seres ao nascimento, ao significado mais profundo da vida. São nove meses de gestação. A dor, o sofrimento e a espera são frutos de seu pertencimento à existência mais humana e que conduz o homem a repensar sobre suas bases de perpetuação das espécies. Não é apenas a continuidade o que a mulher gera, mas a vida pulsante e poética da criação. E a personagem imagina, se projeta no futuro, enquanto dá a vida a outro ser que habita nela, no seu habitat quente e ctônico.
Mas a morte, como não poderia faltar, a luta pela sobrevivência e sua queda, não deixam de existir: “O cheiro do nascimento é o mesmo da morte”. Se a mulher gera, é a terra, a Mãe-Terra, Gaia, que recebe seus mortos. E a imagem das águas é plena de significado ao apresentar o símbolo do que a mácula, o pecado, pode se eliminar pelo líquido, que está dentro (mulher) e fora (correnteza), ambos amalgamados pelo fio umbilical, as águas fluídicas e fluviais são cheias de símbolos. Esse conto nos apresenta o que está implícito e não plenamente aberto, o que está literariamente no plano do imaginário, a passagem estreita que tem de ser percorrida pelo leitor perspicaz. No Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, eles dizem sobre o símbolo da “água”: “As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência”. E o cavalo, estando atrelado aos reinos abissais do mundo ctoniano, “é portador de morte e de vida a um só tempo”. O conto deixa a correnteza ser personagem e ter vida própria, fiando-se nos véus do imaginário.
Em “Vocabulário”, a língua padrão é subvertida, mas é inteligível apesar da ruptura com o que é normativo e culto. Há um pacto autor/língua para que a estrutura da língua seja entendida entre o escritor e seus leitores, apesar das invenções e rompimentos linguísticos, que revelam os dialetos dos falantes da língua popular e marginalizada como um estigma pela norma culta: “ELA tinha sido VENDIDA pela mãe para trabalhar naquela casa. Mas MINGUÉN dizia isso assim, ABERTAMENTE. O que se RETEPIA era o verbo AJUDAR.” A troca das letras nas palavras nos mostra uma moeda de troca, a filha é monetarizada, trocada. A menina passa a fazer na outra família, com posses, o trabalho doméstico, muito difícil e forçado. Ela cuida de toda aquela família, até das crianças. E aí entra a melhor parte do conto, a aprendizagem da escrita e leitura. O menino daquela nova família começa a aprender a escrever. E Divanize apresenta toda a beleza na descrição dos pormenores dessa aprendizagem. A do menino é a norma culta, aprendida na escola. Padrão dos mais abastados. Os mais pobres têm a fala considerada incorreta e o narrador ironiza ao utilizar durante todo o conto palavras com letras trocadas. O narrador densifica isso a partir da diferença de classes.
As palavras têm o soletramento, a ordem certa pelo menino, de A a Z. E a menina pobre vai, belamente, aprendendo com o que ouvia do menino, os sons e movimentos e começa a escrever as primeiras palavras. Faz associações entre nomes e imagens. O aprendizado da língua correta se dá de forma difícil e a menina percebe tudo de forma embaralhada. A menina vai aprendendo com as embalagens das compras e com os jornais que embrulhavam os produtos: “Tinha muito VOCABULÁROI que não compreendia”. E nos jornais que ela lia, temos a dimensão do âmbito temporal na qual a menina se cerca e não entende, a ditadura militar. Com vários exemplos dados pelo narrador, vemos as dificuldades das coisas dos adultos pela menina. A leitura dá novos horizontes a ela que quer passar pela passagem estreita das possibilidades. Temos o mundo do conhecimento e da cultura, que vai adquirindo sozinha através de descobertas.
Mas, ao longo da narrativa, temos ela já crescida e evoluindo na educação, frequentando a escola e até a faculdade. A utilização das palavras em CAIXA ALTA dá a ênfase nas palavras-chave. Palavras como ETSREITA e SITSEMA são fulcrais para o entendimento do conto. O poder transformador da língua se revela na sua ironia, pois a personagem, segundo os críticos ferozes e deturpadores de sua essência, abandona a família e é cooptada pelo poder dominante (abandonando suas raízes), usando em sua campanha política palavras não entendidas pela maioria. Assim, o tiro saiu pela culatra. O aprendizado teve seu efeito contrário. De oprimida passa a opressora pelos comentadores políticos implacáveis, de defesa dos fracos, passa a utilizar palavras difíceis para o grande público, ou seja, os mais pobres. A língua é do poder e não dos desvalidos. Mas não era essa sua intenção, o que ela queria era ajudar os mais fracos e, ao utilizar a língua dos dominantes, erra por desconhecimento das consequências. Há a crítica social, pois o narrador usa a língua popular, errada. Roland Barthes, no seu livro Aula, dizia que a língua pode falar a linguagem do poder. Aqui, Carbonieri faz uma crítica feroz ao sistema fechado da língua dos dominantes, que nem uma passagem estreita dá, sem brecha ou rachadura nenhuma.
No conto “Bagaceira”, também temos a língua irregular, popular, cheia de erros, um português fora da norma culta, do centro, indo habitar nas periferias, descentralizando o poder dominante: “tá achano ruim fodasse tu fica aí pagano de playba má eu sei que tu é mó 171”. O narrador acusa o outro personagem de plágio, que rouba as ideias do texto do outro. A amizade é quebrada e a confiança se perde, o “brodi” não existe mais. O narrador teve sua experiência na pobreza e mais uma vez aqui temos a ascensão social, o narrador passou até fome e passa do barraco, à quitinete, à casa, até chegar à mansão com seu carro de luxo. Mas a linguagem não é marcada por esse crescimento social e, ironicamente, a estrutura está fora do poder linguístico. Outro fator importante nesse conto admirável é a mudança de narradores, passando de um a outro. Depois, temos uma voz feminina. Isso revela trocas, passagens, trânsitos. A chefa da narradora quer que ela pegue um galão de água para os outros funcionários. Se no início, temos um narrador que ascende socialmente, aqui temos uma narradora que não é rica e que tem que fazer serviços incômodos para alguém superior e opressivo. Temos, assim, ordens crescentes e decrescentes, com gradações sociais, com o uso de recursos estilísticos e metafóricos, as chamadas figuras de linguagens. Temos uma narradora mulher, que não é rica e é nomeada, Crísia. Sendo que o primeiro narrador não é nomeado.
Depois temos uma mulher gorda, que tem todo seu complexo de inferioridade, criticada ironicamente por um narrador em terceira pessoa, em que ele a chama de “recalcada”. Temos a branca e magra, com seu padrão de beleza e, também, a preta com cabelo bombril enquanto a Teka é branca e tem o cabelo liso. Vemos, aqui, a crítica mordaz de Divanize, novamente, às normas de beleza instituídas. E o desejo do opressor é que esse tipo de mulher seja morta, violentada e subjugada e depois disso, satiricamente, Carbonieri coloca figuras de emotions, as imagens, os bonequinhos da net com coraçõezinhos. Uma suavidade em meio da brutalidade da linguagem daquele que oprime, querendo esmagar os mais fracos socialmente. Divanize critica, também, a falsa impressão de que as mulheres não se ajudam e são cheias de inimizades e picuinhas, enquanto os homens são mais amigos e se ajudam mutuamente. As mulheres, na visão distorcida do senso comum, ficam apontando defeitos e os homens são irmãos e fazem os outros melhorarem socialmente. Esse é um discurso machista, a oposição “mulheres se odeiam X homens se ajudam”. O feminicídio está aí com toda sua força e os direitos trabalhistas estão indo para o fundo do poço.
Passando para o conto “Exu”, não vemos a imagem da perfeição neste deus: “Exu passeava pelo mundo com suas pernas desiguais, uma mais curta que a outra”. Divanize adentra o folclore popular brasileiro, falando de nossas raízes, como o personagem do saci, que ela compara a Exu. Este queria brincar com uma criança para não ser invisível. E nesse conto, a autora se insere na questão da metaficção, analisando as próprias estruturas literárias e criticando os esquemas estruturais rígidos da Teoria Literária. O seu questionamento na narrativa se dá no ato da narração. A protagonista da história é uma personagem feminina, quando pensamos que é Exu, um personagem masculino. É uma menina que interage com Exu no enredo. E ele entra na cabeça da menina. Temos no conto imagens que ultrapassam o real, o tom realístico, nos enveredando pelo nível do simbólico.
A menina é inquiridora, faz perguntas e entramos em sua mente: “Por que o céu fica em cima e a terra embaixo?” Essas divisões não seriam hierarquias? Modos de dividir tudo em superior e inferior? E aqui, as narradoras se bifurcam, temos uma narradora e seu duplo, uma mais dogmatizada pelos padrões teóricos e uma mais livre, o próprio alter ego de Divanize, sua persona, revelando sua inventividade em criar seu próprio caminho estilístico numa floresta de símbolos. Temos o questionamento do tipo da narradora, se ela é onisciente ou não. Assim, temos a metaficção, com a metalinguagem a percorrer os caminhos sobre as questões sobre a própria escrita. Dessa forma, temos, a meu ver, a metáfora do Ouroboros, a serpente que morde a própria cauda, com a circularidade e enfrentamento da narradora consigo mesma e com seu duplo, trazendo ambivalência à narrativa. A narradora é um espelho com seu universo de reflexões e reflexos. Exu é o mensageiro e traz enigmas para a menina-protagonista. No mundo grego, temos Hermes, o mensageiro dos deuses, com seu caduceu, mostrando a universalidade dos mitos, que se enroscam numa mesma teia de sentidos. Exu pergunta: “Qual é o livro mais bonito, mais caro e mais importante do mundo inteiro”. A menina não sabe responder, criando um fosso, uma passagem estreita, que é uma incógnita. Outra questão importante nesse conto é sair da ironia mais global e sistêmica e percorrer os meandros do eu, a partir da autoironia e da autorreflexão: “Figura de linguagem horrível essa”. A menina se torna adulta e sonha. O código tem uma mensagem que precisa ser decifrada. O significado e o sentido têm de ser revelados e é uma grande surpresa o que aparece no sonho e que não cabe aqui apresentar. Divanize quer colocar sua voz autoral, não determinada por nenhuma autoridade externa e anterior a ela, a tradição é rompida e ela se mostra em seu inteiro vigor e frescor. A teoria para essa autora fantástica surge no próprio ato de escrita e leitura e não a priori, num mundo anterior. Não é a teoria que tem que ser imposta no livro. A teoria surge naturalmente no ato da escritura. Não deve haver uma “camisa de força”, prendendo nossa criatividade. A liberdade do livro ilustra a desconstrução. Divanize cria uma técnica e uma dicção particulares.
Em “Pantera”, um conto mais curto, mas que revela toda potência de significações, encontramos o machismo, o poder patriarcal. A mulher para eles seria escrava, fazendo tudo para os homens. O perigo estaria na mulher através da vingança. Por isso, a submissão. Logo no início do conto, vemos o crime hediondo praticado pelas figuras masculinas: “quano dava na veneta eles ia lá e matavo as muler e de tanto mata elas eles foro garrano gosto pela coisa”. O que o homem queria era obediência sem reclamação. A sujeição da mulher sob o jugo do homem. Contra a submissão, a rebeldia, a loucura, com mulheres que se debatiam e gritavam. As mulheres são submetidas à condição de animalidade e há um abismo entre a que era sã e a doente. Os homens colocavam as deste tipo para morrer num fosso. Os urros delas como feras selvagens.
No final, encontramos o símbolo, a metáfora da pantera, um bicho selvagem que come os homens: “e daí hoje em dia nóis sabe pruque tem pantera que comi omi quano ele tá desguarnecido nessa terra né”. Há um livro muito rico, Moqueca de maridos: Mitos eróticos indígenas, por Betty Mindlin, em que o mundo das proibições e desejos são apresentados. O título do livro é bem sugestivo e nos revela a erotização da linguagem através de uma metáfora culinária. Divanize busca a revolta, nesse conto, das mulheres com relação aos seus homens, para que a violência não seja uma constante e repetida. No portal “Dicionário de símbolos: significado dos símbolos e simbologia”, o sentido da pantera é descrito: “A pantera simboliza desejo e poder. A pantera negra, por sua vez, representa a noite, a morte, bem como o renascimento, sendo um símbolo feminino. Embora com simbolismos diferentes, trata-se do mesmo animal, sendo que a diferença entre eles decorre apenas da cor da pigmentação da sua pele”. Dessa forma, a metamorfose animal é presente no conto, como símbolo do feminino que se vinga da agressividade masculina, dando o retorno disso com o véu negro da metaforização da linguagem que é bem trabalhada, de forma complexa, por Carbonieri.
Para finalizar esta análise da obra monumental de Divanize Carbonieri, nos deparamos com o belíssimo conto “Cuiabá”, que aponta para o esmaecimento da memória e a figuração do não-lugar, o deslocamento a partir da “parede branca”: “é tudo uma questão de geografia literária, eu sei que deveria usar os nomes das ruas de Cuiabá com cenário para essa história, mas a verdade é que me movo sem me importar com os nomes dos lugares”. Num processo de desidentificação, a narradora mostra a desterritorialização. A identidade de cada um seria inserida na sua relação com a sua cidade. Sem referencialidade, Divanize aponta para o corte da referência, que é a relação entre a linguagem e o real. Machado de Assis, por exemplo, em seus escritos, apresentava aos leitores referências à cidade do Rio de Janeiro. Ligado ao seu espaço, aqui teríamos uma relação de identidade. Carbonieri mostra um mundo de desrealização. Esse não-pertencimento a desconecta do que está à sua volta. E a autora constrói ricamente a metáfora para falar dos seres que buscam uma fixidez, os outros buscam uma “âncora”, não ela.
A narradora não procura a estabilidade, é flutuante, fluvial. Enquanto os outros estão “vivos”, ela está “morta por dentro”. Nesse paradoxo de vida e morte, se encontra sua geografia própria. Uma monotonia a assola, todos os lugares parecem iguais, mas ela se ressente por isso e deveria ser uma “autora de sua cidade, da cidade em que vive”. Para o próprio “reconhecimento dos leitores”. Ela buscaria uma identificação dos lugares com seus leitores, sendo o livro uma ponte? Ela cria uma geografia nova, uma “geografia literária genérica” com os lugares sem nome. O que o ficcional apresenta? Os críticos importam? Sem atenções voltadas para a autora, Divanize busca sua singularidade, sendo mais livre. Mas há, novamente aqui, uma ironia no seu desejo, pois queria “ser uma autora de Cuiabá”, seu lugar específico e não geral ou universal. Mas essa “não é a cidade em que nasci”. Ela está fora do espaço de reconhecimento, fora de órbita. Ela até cita que no espaço da selva há os animais e os lugares e que ambos são “uma coisa só”. E entre nós humanos e os lugares? O pensador indiano Krishnamurti, que muito admiro, dizia que o observador é a coisa observada, havendo essa fusão. O sujeito e o que o cerca seriam uma coisa só. E os animais também perambulam pela cidade. A narradora cita vários autores estrangeiros que localizam nas suas obras seus lugares específicos, como Jane Austen, Dickens e Balzac. Aqui, não teríamos as referências geográficas da autora, mas as literárias. Lembrando-me de um grande poeta brasileiro, Manoel de Barros, ele falava dos bichos e da natureza, dava valor a coisas consideradas desimportantes para a maioria. Divanize vê utilidade na inutilidade, o que equaciona a grande dimensão da arte.
A narradora, num processo de autoironia, diz que não está no alcance dela este “cronotopos”, um espaço e tempo específicos. Mas, Divanize mostra as transformações que aconteceram na cidade. A natureza é destruída pelo processo de urbanização. Em nome das construções, um novo cenário aparece. Os bichos, os animais, para fugirem da extinção perambulam em meio à cidade. Aqui, há um hibridismo natureza/urbe. A cidade perde seu mapa, sua fixidez, vai perdendo sua identidade pela desumanização e modernização, pois o humano também caracteriza sua cidade. Divanize não tem o ar fresco da referência, ela não está imersa nessa realidade categórica. Está “à deriva”, “em transe”, como num barco ébrio à la Rimbaud, livre e solta das amarras geográficas específicas que delimitam territórios.
Portanto, nesse livro de contos excepcional de Divanize Carbonieri, temos a figuração de uma plenitude de símbolos que permeiam as linguagens e seus aspectos sociais. Ela realiza uma verdadeira experimentação com a língua, rompendo padrões e elevando dialetos não reconhecidos pelo poder dominante. Na sociedade, aponta para o lugar da mulher em sua emancipação do jugo patriarcal, colocando o feminino no mesmo nível de importância dos homens, pois se deve engolir o outro num processo de deglutição antropofágica, como uma resposta zombeteira e irônica às malhas opressoras da verticalidade hierarquizante. Divanize mostra a necessidade de uma horizontalidade, unificando discursos e rompendo com os centros e hegemonias. Para fechar com grande agudeza, cito a primorosa Simone de Beauvoir, que disse: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.