Um ensaio de Eliete Borges Lopes
Eliete Borges Lopes é escritora, ensaísta, roteirista, diretora, poetisa, desenhista, fotógrafa, maquiadora e iluminadora cênica. É autora dos livros de poesia Scarlet e o Branco (Multifoco: RJ, 2012) e Nem Pés e Mil Cabeças (Edição da Autora, 2014). Seu terceiro livro, Passo Meu Ex-Passo, está programado para ser lançado este ano. É responsável pela Mostra de Cinema e Audiovisual Cinecaos.
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Horror e Contemporaneidade – Parte 1
Resumo
Um panorama do gênero horror a partir do culto dionisíaco, da literatura e mitologia gregas.
Itinerário que permite um percurso sobre o gênero recorrente em pinturas, textos, esculturas, filmes, séries, clips, instalações e performances da Grécia arcaica à contemporaneidade.
Trânsito livre no qual se entrecruza conceitos e formatos e certamente tempos históricos, ordenados de maneira não cronológica. Fragmentos de estudos recolhidos aqui e ali, que tem como guia de leitura e a intuição autogerada a partir de imagens e textos.
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O culto a Dioniso que se configura num misto entre espiritualidade e representação folclórica pode compreender a mais antiga origem do teatro. A máscara de Dioniso dependurada num poste, onde em procissão a aglomeração pagã celebra regada a vinho, orgias e excessos do corpo, principalmente na música e na dança.
Dioniso não é o Deus mais ordeiro. Logo, o caos promovido pelo seu culto fora proibido pelo Estado, passando numa longa história de escrita de peças (Ésquilo, Sófocles e Eurípedes) a serem representadas e ordenadas a partir de algo mais controlado e destinado à apreciação e não necessariamente à interação. Surge a plateia do teatro.
Mas a representação das mais belas e trágicas histórias continuam sendo narradas desde lá. A tônica é basicamente a mesma, porém a forma está completamente alterada. A feiura, a bestialidade e animalidade e a maldade dos deuses perpassam a literatura mais antiga e continuam com Saturno a devorar seus filhos, Medeia a massacrá-los para vingar-se de seu marido infiel e mesmo Tântalo, que cozinha o próprio filho e serve-o aos deuses, para que provem sua carne e ele descubra se são realmente tão perspicazes.
A lista das atrocidades praticadas pelos deuses e deusas é um dos principais temas dos mitos gregos e das narrativas literárias míticas e delas, não por derivação, transplanta-se ao teatro, à plástica, à música… e na contemporaneidade ao corpo, desta vez, em performances e body art, só para lembrar duas modalidades. Modernamente, os objetos também passaram a compartilhar disso que podemos chamar de horror e que não possui uma única definição. Melhor até que não tenha, claro.
Man Ray -“Objeto para presente”
Hoje, mais que nunca, produz-se e, sobretudo, divulga-se mais que todas as épocas as modalidades, suportes e realidades em que se podem produzir uma narrativa sobre o tema horror, e seria tarefa hercúlea a representação do horror na arte contemporânea, por isso optamos por um trajeto apenas, sabendo que este excluirá inevitavelmente obras, autores, diretores, produtos e produtores.
Façamos um parêntese para dizer que não é apenas o campo da ficção que está carregado de realizações que trazem o gênero à tona. Apesar de não ser esta a direção do texto, façamos uma ressalva: o horror se faz presente diante de nossos olhos todos os dias, basta abrir um jornal na coluna policial e veremos casos e mais casos que são verdadeiros roteiros, cenas e descrições que poderiam ser representadas por diversos suportes e modalidades artísticas. Figuram na realidade das páginas de notícias espantosas matérias sobre decapitação, chacina, esquartejamento, assassinato, rapto, parricídio, tortura e sequestro que se misturam, não sem menos espanto, a comerciais de eletrodomésticos, venda de imóveis, lingeries da moda.
Até mesmo as famigeradas telenovelas buscam, de maneira suavizada, representar o horror em figuras encarnadas por vilões e tramas dramáticas que, através de eventos como traições, sequestros e mortes, demonstram entre uma cena e outra o horror de uma mocinha a ser perseguida ou um pai de família sendo ameaçado por ladrões geralmente estereotipados. Mesmo sendo cenas pobres em termos de horror, acabam por ganhar a audiência, não exatamente por apresentar o horror em si, mas sim por gerar uma tensão que é esperada pelos “noveleiros de plantão”, este “horro-r-aso” uma espécie de horror suavizado, eufemizado, que é causado mais pela apreensão do corte, do tempo em que se dará o desfecho (o próximo capítulo), que propriamente pelo horror apresentado.
O que nos perguntamos para direcionar o texto é: como a tradição ocidental vem lidando com a superabundância da temática? Essa superabundância me levou a utilizar de um mosaico criado a partir de imagens, criaturas, atos e histórias que ganham corpo na longuíssima história do horror.
Definir contornos para o gênero dentro da modalidade cinema, por exemplo, é em si já uma tarefa árdua. Tentar abarcar outros gêneros é sofrível e por isso mesmo não estou me dispondo a fazer uma história do horror, mas sim demonstrar que o gênero perpassa diversos tipos de expressão e vem sendo empenhada por escritores, críticos, cinéfilos e artistas de toda ordem. O tema é bem explorado, e rastrear a produção é se haver com um intrincado labirinto de gêneros, narrativas, enredos, estilos, personagens e criaturas.
Os “produtos derivados”, como o misto entre comédia e horror e drama e horror, fazem com que o gênero ganhe por vezes as características de uma produção híbrida, além de que os formatos também geram uma bela confusão, já que usar do horror num curta de 17 minutos é completamente diferente de usar do mesmo gênero em um longa. A produção é volumosa e os seus consumidores não apenas assistem e comparecem às exibições, eles fazem a crítica e inventam a partir do gênero.
A linha entre cinema de horror e cinema fantástico, por exemplo, é bem tênue, a linha entre horror e terror, trash e underground, de igual maneira, faz com que, quem deseja esquadrinhar este universo ou crie linhas autorais de interpretação ou categorias específicas para cada tipo filmado. As divergências não sanadas não constituem grandes problemas, nem para quem filma nem para quem deseja concretizar essas tais linhas divisoras de entendimentos sobre os gêneros horror, terror, trash, underground ou Shot on Vídeo (S.O.V) – feito em vídeo.
Uma ressalva para esta distinção, a de S.O.V ou filmado em vídeo, que aparece aqui como uma possibilidade para a tão desejada definição dos contornos entre gêneros.
Cinema de horror, terror, undergroud, trash e o S.O.V perpassam-se em muitas concepções e produções, alguns críticos e escritores preferem a não existência dessa linha. Particularmente, não entendo como problemático os entrecruzamentos, eles são mesmo inevitáveis, isso porque os elementos narrativos, imagéticos e de efeitos são utilizados irrestritamente por diretores, produtores e roteiristas sem a preocupação de como nomear esta ou aquela obra ou produção.
Para este momento, limitar-me-ei a buscar um fio condutivo de como um determinado tipo de expressão pode se manifestar-se como produção de estilo horror. Assim, busco diferentes campos, para minimamente dar conta do fenômeno que expressa o que existe de sombrio, aterrorizante, mórbido, feio e bizarro na existência humana. E essa será uma prerrogativa aqui, que o horror é a manifestação expressa do medo, daquilo que aterroriza, traz à tona um tipo específico de mal-estar.
Quanto mais apreensiva eu fique diante de uma tela, isto é, de uma narrativa, quanto mais horror me causa um determinado tipo de expressão, melhor a qualidade da sensação. Assim, para mim, o bom filme de horror ou é aquele em que quero tapar o rosto, aquele que me faz querer parar a imagem e respirar antes de continuar, ou aquele que me prenda de tal forma, que me faça respirar diferente, sem estar satisfeita até que a cena ou filme acabe, mesmo que seja uma cena longa ou um filme longo. O bom filme de horror é aquele que, numa imagem, eu resumiria como: “assisto entre as frestas dos dedos sobre a cara”. Entre um desejo contraditório, a curiosidade de perceber a que ponto pode ir a crueldade humana e o receio de não a suportar. Geralmente, optamos por ver até onde suportamos. Um acidente de moto em que o motoqueiro real tem o cérebro espedaçado no meio do asfalto pode causar menos horror a alguns do que uma imagem meio desfocada de um cabideiro com um chapéu no topo, colocado atrás de uma porta com uma música criando suspense…
Um caso muito pessoal e que se configura, para mim, como um filme que cumpre muito bem esse papel é Embaraço, de Fernando Rick. Confesso que só senti um pouco de alívio quando, ao final, nos créditos, é mostrado o nome do responsável pelos efeitos especiais. A radicalidade do tratamento de um tema polêmico me causou profunda marca na maneira como o diretor resolveu mostrar não o aborto, tema de qual efetivamente o filme trata, mas sobretudo a decisão de retratar, para além do aborto, algo que nos é comum: a Agonia.
Esse tema me tocou principalmente pelo ritmo do filme e pelo fato de, na efetividade de um corpo feminino, poder em potencial experimentar essa Angústia. A agonia dos muitos dias que se passam numa mesma e única angústia, que é a de tentar expelir um feto e não ter sucesso, é uma agonia profunda, que é a de estar entre a vida e a morte por muito tempo. Assim, o que tem de horror no filme se liga a um imaginário que é coletivo, daquilo que efetivamente está dado na cultura, mas muito mais, pois se liga a COMO a subjetividade sente esse dado da cultura, esse tema. A maneira como minha sensibilidade sentiu o filme é tão pavorosa quanto o pavor que imagino que o diretor tenha querido imprimir e ao que algumas mulheres realmente sofreram. A condição de mulher me dá a possibilidade de um outro ponto de avaliação a do seu diretor, de maneira que escolhi este filme justamente por isso.
Existem muitas premissas para um filme de horror funcionar: roteiro, técnica, filmagem, interpretação… e, em grande medida, eu diria que um filme de horror funciona sobretudo pelo que instala no espectador. Até que ponto uma obra que pretende causar angústia efetivamente alcança essa condição depende fundamentalmente em que nível ela atinge o espectador. E é por isso que continuamos assistindo filmes de horror, porque desejamos ver o nosso limite, o quanto suportamos estar horrorizados, permanecer pasmos e aterrorizados. Do filme em questão, desisti duas vezes e somente na terceira consegui ir até o final, e quando o fim chegou, não me senti mais confortável.
(Imagem de capa: Video Violence [EUA, 1987], de Gary P. Cohen).
Afonso Alves
EXCELENTE narrativa sobre o medo e como a agonia pode causar uma katarsis no nosso cerebro.