Eduarda Rocha entrevista Fernanda Laguna – “Não se trata de escrever um poema bom, senão algo necessário”
Fernanda Laguna (Hurlingham, Buenos Aires, 1972) é escritora, artista visual, curadora, gestora cultural, dona de casa e bissexual. Fundou, junto com Cecilia Pavón, a editora em fotocópias e galeria de arte Belleza y felicidad, pela qual publicou mais de 30 livros de poesia. Grande parte de sua produção poética está reunida em: Control o no control (Mansalva, 2012), La princesa de mis sueños (Iván Rosado, 2018), Los grandes proyectos (Página/12, 2018) e Pañuelo de mocos (Iván Rosado, 2022). Sob o heterônimo Dalia Rosetti publicou diversas narrativas. Seus quadros pertencem a várias coleções de museus ao redor do mundo, tais como: Malba, Guggenheim NY, Reina Sofía. Foi uma das fundadoras da Eloísa Cartonera. Acaba de publicar Um chamado telepático de socorro (trad. Eduarda Rocha), seu primeiro livro no Brasil, pela Macabéa Edições.
Eduarda Rocha (Maceió, 1991) é graduada em Letras/espanhol, mestra e doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Alagoas. Tem se dedicado a pesquisar as poesias brasileira e argentina contemporâneas, em perspectivas feministas. Em sua tese analisou a obra das poetas Angélica Freitas, Cecilia Pavón e Fernanda Laguna. Traduziu diversas poetas latino-americanas para inúmeras revistas literárias. É co-editora da Revista Felisberta. Atualmente, realiza Pós-doutorado sobre políticas do desejo na poesia Fernanda Laguna, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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“Não se trata de escrever um poema bom, senão algo necessário”: entrevista com a poeta argentina Fernanda Laguna
Por Eduarda Rocha
Fernanda Laguna acaba de lançar seu primeiro livro no Brasil, Um chamado telepático de socorro, pela Macabéa edições. A antologia bilíngue faz um percurso por toda a obra da poeta argentina, reunindo poemas de 1995 a 2022. Nesta entrevista, ela conta sobre a sua viagem ao Brasil em 1999, junto com as poetas Cecilia Pavón e Gabriela Bejerman, que serviria de inspiração para a abertura do local físico de Belleza y felicidad: editora em fotocópias, galeria de arte e lugar mítico para a cultura underground argentina. A conversa percorre também seu trabalho de ativismo cultural em Villa Fiorito, a militância no coletivo feminista Ni Una Menos e algumas questões caras a sua obra. Além de poeta, Fernanda escreve narrativa sob o heterônimo Dalia Rosetti e é artista visual, cuja obra pertence a vários museus ao redor do mundo, tais como o Malba, Guggenheim NY, Reina Sofía. O livro traz alguns desenhos da série do coração, realizada entre 2007 a 2017 que acaba de ser adquirida pelo MoMA. A multiartista vem desenvolvendo o conceito de arte_lin, que, para ela, representa tudo o que ainda não é considerado arte; “_lin” seria uma maneira de nomear e incorporar o desconhecido.
Acaba de sair Um chamado telepático de socorro, seu primeiro livro no Brasil, 24 anos depois da sua viagem a Salvador com Cecilia Pavón e Gabriela Bejerman. Na Bahia, vocês conheceram as lojas de presentes e a literatura de cordel, que serviram de inspiração para abrir o espaço físico de Belleza y Felicidad. No poema “Salvador Bahia, ela e eu” você conta um pouco dessa viagem. Em seu livro aparecem outras referências ao Brasil: um poema sobre Xuxa, uma carta para Dilma Rousseff. Você poderia nos contar um pouco mais sobre a sua relação com nosso país?
Imagina só que no Brasil comecei a escrever poemas longos, motivada pela poesia de cordel. Nesse poema sobre a Bahia peço inspiração para que meus poemas cresçam para baixo. Comprei uma adaptação de Boccaccio a uma versão popular poética numa loja cheia de poeira (purpurina para mim). Quase morro com a genialidade. Não lembro se era o Decamerão, mas estava todo escrito em versos rimados. Senti que queria escrever assim, histórias longas, versadas, que tratassem de diferentes temas a partir de um sentimento popular: a praia, uma dona de casa, a virgem, amor entre mulheres em lojas de roupa. O que conheço do Brasil é o litoral, esse fino espaço hipnótico cheio de rituais, jogos esportivos, paquera, comidas e bebidas passando, amizade e muita pele. Música e sol. No Brasil, descobri o prazer infinito de tomar cerveja às 11 da manhã sentada num barzinho em frente ao mar, enquanto escrevia poemas sobre Cecilia Pavón e Gabriela Bejerman, minhas deusas pessoais, na minha agendinha verde. Também roubei o conceito “de revirar” dos cestos expositores que havia nas lojas populares. Ao chegar a Buenos Aires, armamos em nossa loja Belleza y Felicidad três mesas redondas, coloridas, nas quais se misturavam: calcinhas, velas, brinquedos, copos, peões, prendedores de cabelo e muito mais. Objetos pretensiosos a preços baixos. Absorvi tanto do Brasil que ainda com a distância continuo aprendendo.
Belleza y Felicidad surgiu no final dos anos 90 e começo dos 2000, numa época de forte crise econômica na Argentina, quando se multiplicaram as edições artesanais. O formato em fotocópias favorecia a publicação imediata. Como funcionava esse processo de edição?
A ferramenta da fotocopiadora e o fato de poder armar o livro ao meio-dia e imprimir de tarde mudou um pouco a forma de escrever. Podíamos contar coisas que aconteciam nesse dia e de noite e poderíamos vender o exemplar e nos comunicarmos com quem quisesse ler. Os livros de Byf eram um Instagram em papel grampeado. Também acontecia que por ser tão baratos as/os leitoras/es compravam sem saber o que estavam comprando e isso fazia crescer nosso número de “amigues”. Os livros de ByF contêm um poema, são anti-antológicos. São um post que se compartilha no feed de uma fotocopiadora. Lembro de levar os exemplares de El mendigo chupapijas e que me olhassem estranho. Também com Todos putos… una bendición acontecia o mesmo, mas eu não estava nem aí. Depois da fotocopiadora vinha a montagem do livro, muito simples, mas levava seu tempo. O próximo passo era vender. Numa época íamos a bares, inaugurações de galerias e os levávamos, com o que vendíamos comprávamos uma cerveja ou comíamos no dia seguinte.
Em 2003, quando as galerias de arte abriam filiais na Europa, você inaugurou uma sucursal de Belleza y Felicidad na periferia, no bairro de Villa Fiorito. Por aí passaram vários/as artistas, mostras, oficinas. Vocês se autodefinem como Escola de arte_lin popular contemporânea feminista. Que atividades são realizadas em Fiorito atualmente?
Há 20 anos abri um espaço cultural em Villa Fiorito e, a partir desse momento, foi um tremendo aprendizado. Tive alguns momentos em que quase abandonei tudo e outros em que o trabalho coletivo salvou completamente e estamos a todo vapor como agora. Somos um grupo de artistas e pessoas do bairro que atuamos planejando os conteúdos da escola de arte_lin popular contemporânea feminista. Oferecemos oficinas muito variadas que integram várias artes: poesia, arte e edição; história da arte e escultura; pintura e curadoria; poesia e comida; oficina de arte integral para crianças com as quais fazemos visitas a museus. Temos nossa cozinha popular que funciona como restaurante e nossa galeria de arte que expõe obras de artistas do bairro e de outros lugares. Também temos oficinas de fotografia, costura, desenho de moda com seus desfiles e oficinas para adolescentes que unem a poesia, o desenho e a performance. Há uns dois anos começamos com um projeto de impacto social chamado “Orgulho cartoneiro” no qual através de diversos meios e formatos (broches, cartazes, poemas, camisetas, cerâmica, edições) ajudamos a dar visibilidade ao trabalho de catar papelão e trazemos o tema para discussão. Um grupo de cinco artistas do bairro está fazendo carrinhos de catadores com cerâmica que a gente pode carregar com uma belíssima diversidade de objetos que para muitos são de descarte.
Em “A senhorita”, poema de 98, há um verso em que você diz que está pensando em organizar uma revolução. Alguns anos mais tarde se cumpriu o sonho do poema e você participou ativamente do Ni Una Menos, inclusive pintando bandeiras e fazendo instalações para as manifestações. Junto com Cecilia Palmeiro você cura o arquivo vivo da maré feminista, Mareadas en la marea. Como tem sido essa expêriencia de construir coletivamente o movimento feminista?
Talvez eu sentisse o impulso de participar coletivamente de algo que em meu radar não existia. Às vezes é como se na escrita eu antecipasse coisas, desejos, eventos, circunstâncias. Em Dame pelota [romance de Dalia Rosseti, publicado em 2008] a personagem sangrava sem parar e vários anos depois aconteceu comigo. Não diria que sou clarividente, mas sim que a intuição escrita percebe os fatos que virão. Quando através de Cecilia Palmeiro comecei a militar no Ni una menos – que é muito mais que um coletivo, é um grito – me senti tão plena, algo se completava em minha vida. As passeatas, a rua, pensar coletivamente… O “acorpamento” que significa esta revolução… As greves, as bandeiras, as assembléias repletas de mulheres, travestis, trans, não bináries… Resolver problemas, chegar a acordos, transformar, aprender, crescer. Cecilia e eu estamos escrevendo nosso diário íntimo da revolução. Basicamente, como vivemos os anos entre 2015 e 2020, narrado a partir de um nós, um eu múltiplo.
Na verdade você antecipou muitas coisas. Na carta para Dilma, por exemplo, você imagina uma greve de mulheres e o que seria do mundo se as mães não dessem de mamar aos bebês. Você fala de trabalho doméstico em alguns poemas (“A dona de casa”, “De dona de casa a mãe em casa”), de caça às bruxas (“Reflexões automáticas”). Na sua poesia você já vinha tratando de questões que seriam bandeiras centrais dos movimentos feministas. Como era sua relação com os feminismos antes de fazer parte do movimento?
Na realidade, eu não tinha relação com os movimentos feministas do momento, até 2010 mais ou menos. Eu evidentemente “sabia” que o feminismo era o máximo, por mais que não tivesse ideia do que era exatamente. Ao mesmo tempo, para mim os feminismos eram Cecilia Pavón e Gabriela Bejerman, Rosario Bléfari, María Moreno, Ian Breppe, Lohana Berkins, Cecilia Palmeiro, minhas companheiras da marcha do orgulho LGBTQIA+, com as quais marchamos com os peitos de fora em 2000, e muitas outras que eu reunia em minha imaginação como um grande movimento. Atuávamos independentes, mas impulsionando uma militância que estava por vir.
Você assina sua poesia com seu nome e escreve narrativa sob o heterônimo Dalia Rosetti. Como isso funciona para você? Quem é Dalia?
Meu nome tampouco é meu nome. Me chamo María Fernanda Laguna e num dado momento decidi ser em minha vida artística Fernanda Laguna. Então, Dalia Rosetti não é mais que uma outra escolha de vida. Uma possibilidade e necessidade de ser. Quando sou Dalia escrevo romances de aventuras num mundo conformado 95% por mulheres, lésbicas e trans. Ela não tem as preocupações de Fernanda, por isso flui para além do bem e do mal, para além do possível e do impossível.
Seu livro mais recente se chama “Pañuelo de mocos” (Lenço de catarro). É como se cada poema fosse um desabafo. Um deles diz “queria contar o que sofri/ mas não é poético”. Este livro foi uma maneira de poder falar sobre alguns traumas?
Sempre expressei o que as coisas que aconteciam comigo me faziam sentir, escolhendo linguagens fantásticas ou camuflando por trás de pequenas situações insignificantes. No entanto, em Pañuelo de mocos não queria que restassem dúvidas do que estava contando, embora não fosse tão poético queria incluir. Então, surgiu a ideia de construir um enorme bueiro onde pudesse despejar tudo o que havia vivido, com a mesmíssima linguagem que usava. Os poemas estão sem correção e os versos se repetem em várias partes, assim como as imagens. Num bueiro tudo vai parar no mesmo lugar, tudo se mistura. Não se trata de escrever um poema bom, senão algo necessário.
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Fernanda Laguna (fotografia: Estrella Herrera [detalhe em p&b do original colorido]):
Eduarda Rocha: