Falhas institucionais, problemas de educação – Por Angie Barbosa
Quando crianças e adolescentes trans têm evasão escolar de 82%, quais políticas públicas poderiam resolver esse problema? Quando uma criança trans é expulsa de casa aos 13 anos de idade, como falar de educação? Que tipo de educação é necessária pra formar uma pessoa jovem para a vida trans, o que precisa ser aprendido, quais habilidades devem ser ensinadas — quem saberia ensinar? Quando uma estudante trans de 16 anos é espancada por um grupo de rapazes na escola, quando essa violência acontece depois de dias de assédio e intimidação, como se deve proceder? Qual solução pode ser dada? Qual o modo ideal de agir de uma instituição?
Para a estudante trans de Mogi das Cruzes (SP), vítima de violência transfóbica na última semana, a solução foi simples: ela pôde “decidir” ficar e ter aulas em casa, ou trocar de escola. Lideranças e movimentos sociais foram acionados. Ações institucionais cobradas. Programas que buscarão sensibilizar estudantes cisgêneros para o contato com a diferença e formar professores para uma atitude antidiscriminatória. Tudo está bem. Ficando em casa, ela dá a seus colegas e professores cisgêneros o que todos queriam: aniquilar uma presença trans de seu espaço de convivência. Eles poderão discutir e se sensibilizar para o contato com a diferença — mas muito longe dela, e pensar os impactos negativos da transfobia sem precisarem conviver com os efeitos de sua própria brutalidade. A polícia cuida da segurança. Um profissional da psicologia cuida do trauma. A escola não precisa ter uma crise ética nem de identidade: todos os aparelhos foram acionados como deveriam.
A única justiça que o Estado é capaz de prover contra a violência anti-trans é justiça fictícia. A retórica e a prática de Estado privatizam a violência sistêmica na forma de casos isolados gerenciáveis por aparelhos especializados. Isso mantém uma situação onde os sistemas nunca precisam ser repensados, porque parecem sempre conter uma resposta para a violência que eles mesmos produzem. O Estado substitui o particular pelo geral por intermédio da identidade, transformando o gerenciamento isolado de um caso numa expressão abstrata de “justiça trans”. Mas não há justiça real. Os aparelhos institucionais não podem conter os efeitos de um sistema produtor de violência anti-trans, porque eles são o sistema produtor de violência. Como Aparelho Ideológico de Estado, a escola é também um Aparelho Ideológico de Gênero. A doutrinação do modo de vida cisgênero e a ritualização de seus códigos de violência são parte do funcionamento e da estrutura da escola. Não há falha institucional quando uma instituição constrói seu espaço social para produzir relações de competição, segregação e violência. A escola forma sujeitos segundo a retórica do Estado acerca de um cidadão humano livre beneficiário de direitos e segundo a retórica colonial sobre o conhecimento e a autoridade de produzir e difundi-lo. E por que a cidadania é a ficção regulatória de um sistema de aniquilamento e abandono organizado, sua gramática é ensinada na prática. Quando uma estudante trans de 16 anos é espancada por um grupo de rapazes na escola, quando essa violência acontece depois de dias de assédio e intimidação, não há solução ou conciliação possível. Quando a brutalidade cisgênera atinge seu objetivo, não há ação institucional ou política pública capaz de prover reparação. Nenhuma solução real além de levar toda escola a escombros, destruir a relação alunos/professores, abolir o sistema educacional com todos os seus pressupostos violentos — repensar tudo.
Não há educação trans se educação depende do acesso a uma habitação, da posse de documentação adequada, de segurança econômica, de conformação à norma. Não há educação trans se o ensino não acontece nas ruas, não há educação trans se as relações são autoritárias, nem há educação trans se não se discute o conhecimento situado no corpo trans, não há educação trans se o horizonte do processo educativo é a vida no mundo que nos está dado a conhecer, não há educação trans se pessoas trans não ensinam. Tampouco há qualquer sensibilidade que mantenha intactos os pressupostos da vida cisgênera. O modo cisgênero de vida depende do mecanismo colonial de dessensibilização para sua própria violência. Não há nada que o mundo cisgênero precise aprender sobre a transfobia: suas próprias instituições coloniais a inventaram e sustentam com sua imposição de gênero para a eficácia do projeto de supremacia branca. Pessoas cisgêneras não precisam pensar sobre os impactos de sua própria violência porque já o fazem, e atualizam essa violência como tecnologia de dominação. Não há nada a ser aprendido, porque o exercício de educação e sensibilização de pessoas cisgêneras para o contato com a diferença é um exercício contrapedagógico. Qualquer educação que tenha um compromisso real com a vida trans deve gerar uma crise violenta de identidade e realidade para o mundo cisgênero, porque exige que pessoas cisgêneras, e sobretudo os homens cisgêneros, desaprendam completamente os próprios modos de existência.
Em vez de sensibilizar o grupo dominante para um contato com a diferença que afirma sua alteridade, a educação deveria produzir uma nova gramática onde “diferença” significa compartilhar e multiplicar as possibilidades de subjetivação e liberdade existentes. Isso exige abandonar um princípio normalizador e portanto a própria lógica da escola como instituição. Da perspectiva de um pensamento radical trans, a educação pode produzir não apenas o conhecimento necessário para resistir a esse mundo, mas também a faísca imaginativa capaz de incendiá-lo. Sabendo que nossa imaginação radical jamais se concretizará na escola, não podemos pensá-la como horizonte. Nas instituições de ensino, a resistência pode ser praticada ativamente contra a violência, numa lógica antipolítica e contra-institucional. Isso significa construir uma estrutura autônoma de ajuda mútua que seja capaz de prover tanto estratégias de cuidado quanto um espaço de reflexão crítica contra a ideologia e violência de gênero da escola. Mas apenas estar na escola e resistir à escola não dá fim ao sistema produtor de violência. Esse é um trabalho construtivo/destrutivo, e não meramente oposicional. E exige um movimento de mentes criativas capazes de construir educação trans numa lógica para além da violência: contrabandear conhecimento, ensinar fora da escola, burlar a lógica acadêmica, guardar segredos. Nos apropriar de modo anárquico do conhecimento como temos nos apropriado anarquicamente das tecnologias de gênero.
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Assinada por angie barbosa, essa coluna toma força e inspiração de movimentos anarquistas, feministas e trans/travestis. Essa coluna é um movimento. Somando-se a uma tradição de divulgação política anarquista, ela busca abrir espaço para que a radicalidade se mova expropriando e coletivizando teoria; abrindo caminhos para a educação política radical trans/travesti. Pois não resistiremos à violência sem antes entender seus movimentos, não nos radicalizaremos sem antes enxergar alternativas, não reconstruiremos o mundo sem antes abrir as portas de nossas imaginações para fabular em rebeldia contra o mundo cisgênero. Somente então podemos parar de pedir inclusão para exigir abolição. Revoltar-nos contra tudo que nos for imposto, expropriar tudo que nos for possível, coletivizar tudo que nos for garantido, formar redes em todos os lugares que nos forem acessíveis e cuidar de todas que as nossas potências alcancem, para garantir hoje — com toda dor e prazer do processo — as forças que construirão nosso amanhã!
angie barbosa é travesti, artista visual, integrante da coletiva wonder de teatro. Se dedica de modo autônomo aos estudos feministas e aos estudos queer/trans e busca realizar iniciativas de educação popular sobre gênero e sexualidade para pessoas trans.