Memória #Zero – Memórias táteis, intempéries e outras derivas por Gabriele Rosa
o gosto pelas miudezas cotidianas estrutura minhas memórias táteis. carrego na ponta dos dedos um universo de muitos afetos e um tanto de intempéries e derivas em p&b. bordas, beiras, margens. os entornos me encantam. os lugares em que sou chamada pelo nome. paragens ordinárias, não-lugares, esboços, rodoviárias, caminhos encruzilhados de poéticas sentimentais, ruínas, telefones de uso público, lágrimas avulsas, pressão baixa, lápis pela metade, saudades, rotina. me permito escrever para esquecer. não há memória sem esquecimento.
aos poucos, refabulo os dias e reencanto o olhar e convoco futuros. costuro palavras no tempo. sou capaz de reconhecer alguém ao tocar a pele – temperatura, textura, a frequência dos poros – embora seja péssima com a relação rostos/nomes/datas. nos últimos meses, habitar as estranhezas domésticas de amigos, caminhar pelas ruas alheias e ocupar a cidade com o meu corpo, tem alimentado uma série de pequenas investigações internas sobre hábitos, arbítrios e humores. uma coreografia do despalavramento. engrenagem de linguagens táteis, resgate do espanto, de uma alegria despretensiosa, fácil, boba.
as manhãs não me vestem bem, fato. vibro em altas frequências após 22h. talvez seja obra do meu metabolismo desorbitado, ou a tal conjunção rara entre saturno e urano que carrego no meu mapa natal. tenho três primeiras memórias: a primeira pode ser ficção, a segunda pode ter sido editada por uma fotografia datada de quatorze de setembro de 1992, e a terceira, talvez seja realmente a primeira, a que menos gosto.
[sobre a minha primeira primeira memória
é um horário: 2h43min. nasci numa madrugada de quinta-feira, lua minguante. parida antes do horário citado. seria possível lembrar das vozes do casal de obstetras que fizeram o meu parto, minutos depois de nascer? pois bem, lembro. olhos entreabertos, sinto o mundo pela primeira vez. enfim, nasço. vejo o vulto das veias saltitantes da mão, os dedos longos e as unhas rosadas. frágeis. respiro pouco. meus poros todos abertos. frio. ele disse à mulher extasiada – 2h43min, ela tem olhos castanhos curiosos – risos, céu branco desestrelado, uma gota oceânica percorreu a minha bochecha, um aperto forte. o cheiro dela, no dia dela, mãe. agora, nosso dia. 2h43min. respirei o mundo num fôlego único e dormi. o sono me levou adiante.
*
minha mãe pediu no hospital pra mudarem meu
horário de nascimento na certidão, meu mapa deu
problema, o astrólogo está confuso.
*
observo os vestígios que moram nas brechas: não há travessia incólume e nada substitui o acontecimento do convívio. encontro, contato, troca, fricção. entre as pesquisas sobre performances-oráculos, manicuras e heterotopias, nasce nos alvéolos uma investigação sobre memórias telefônicas. levanto a engrenagem, começo a cerzir com pontos diversos uma poética dos orelhões, a partir de histórias de amor – perdido, vivido, imaginado. um sonho, eu sei, uma aventura e tanto. a década de 1990 está na retina e faina pelas minhas sinapses acaloradas. co-memoro e reinvento. escrevo. desenho um projeto com ações artísticas plurais, deslocamentos terrestres, diálogos, trocas, trânsitos, delírios e afetividades rizomáticas: e se o amor for uma chamada perdida?
Chu Ming Silveira com o orelhão instalado na FAU USP, anos 70.
com projeto de Chu Ming Silveira, criado em 1971, a inauguração para o público ocorreu em janeiro de 1972, orelhões foram instalados no Rio de Janeiro, no dia 20, e em São Paulo, no dia 25. parte de uma memória coletiva, os telefones de uso público disseminaram novos paradigmas de convivência. completados meio século em atividade, eles já figuraram canções, poemas, filmes, propagandas e o imaginário de uma população que encurtou as distâncias através da voz, da palavra e da escuta. o exercício da escuta ativa me transborda. objeto encantatório de sentidos, hoje, em desuso, os orelhões se converteram em pequenas ruínas, silêncios plantados pelas cidades. avessos, assombros. lembro das filas, das histórias ouvidas a conta gotas, este número de telefone não existe, dos risos e dos choros embargados, tu-tu-tu, do som dos dedos velozes nas teclas, dos cartões coloridos e colecionáveis, esta chamada não pode ser completada, do paninho cinza que minha avó carregava embebido em álcool para limpar o fone antes do uso – alô?
atualmente, segundo a ANATEL, o Brasil possui 144.471 orelhões instalados, destes, 97.510 estão em funcionamento e disponíveis para uso. estou percorrendo os orelhões, mapeando, tateando, tecendo uma cartografia de afetos e memórias – emprestadas, ficcionalizadas, vividas – ouvindo histórias pelos caminhos. andarilha, carregando nas mãos histórias de muitos amores. meus, de outres, nossos.
me conta uma lembrança de orelhão? qual a sua primeira memória com os telefones de uso público? partilha uma história de amor, vai. se eu te ligar, seu telefone toca?
me empresta uma memória? pode ser em áudio, texto ou vídeo. envie para eseoamorforumachamadaperdida@gmail.com
e se o amor for uma chamada perdida?
[continua]
p.s. nenhuma história compartilhada por e-mail será publicizada em sua inteireza sem autorização prévia do remetente.
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Na coluna mensal memórias táteis, intempéries e outras derivas, Gabriele Rosa escreve sobre miudezas cotidianas, não-lugares, objetos de afeto, experimentos artísticos, percursos e retratos de leituras, diálogos e entrevistas com artistas contemporâneos e evoca memórias vividas e ficcionais. Uma encruza entre literatura, história, teatro e artes visuais. Ancorada em múltiplas linguagens artísticas, a coluna faz parte de um processo de investigação poética, tecida de forma colaborativa, processual e não-linear. Entre derivas (e pequenos delírios) e andanças, a coluna irá ao ar sempre na segunda quarta-feira do mês.
Gabriele Rosa é natural do Rio de Janeiro. Artesã da palavra e da cena, atua como dramaturga de processo e dramaturgista na Bonecas Quebradas Teatro. Bacharela em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), integra o coletivo CuidadoPoema. É autora de Fendas extraordinárias (Patuá, 2019) e de Lavínia é mais Rosa que Espinho (Motta, Carla, Libertinagem, 2022). Assina a dramaturgia do Radiodrama Tiro suas camadas de esmalte (contemplado no edital Cultura Presente nas Redes 2 – com patrocínio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, 2022). Tem contos e prosas curtas publicados em revistas literárias virtuais nacionais e internacionais, e antologias.
gabrielerosa20@gmail.com
@__gabrielerosa