Trabalhadoras de gênero – Por Angie Barbosa
Recebendo o dinheiro pelos meus últimos trabalhos, sinto uma sensação de alívio. Não só por saber que vou conseguir comprar livros que preciso pros meus estudos, contribuir em casa com o que for necessário e manter alguma autonomia financeira, que tem se tornado cada vez mais importante pra mim, mas principalmente um tipo trans de alívio, de saber que ter um dinheiro sobrando me ajuda a garantir um pouco mais de confiança e afirmação de gênero. Com esse dinheiro vou poder ver pessoas e estar em espaços onde me sinto segura e validada, talvez comprar mais algumas blusas pra continuar trocando meu guarda-roupas, repor alguma maquiagem que eu estiver precisando e no geral, cuidar de mim mesma. Transicionar nos obriga a nos confrontarmos com uma dimensão bastante material, bastante prática do gênero. Leva uma quantidade de recursos, tempo, trabalho. De trocar um guarda-roupas, a cuidar de cabelos, manter depilação em dia, pintar unhas, tomar shots de testosterona, enfrentar filas, encontrar e frequentar espaços seguros, encontrar e manter relações que ofereçam suporte emocional, cuidar da saúde, discutir com outras manas quais hormônios são mais ou menos acessíveis, mais ou menos seguros, negociar riscos, tomar decisões perigosas, encontrar meios de se proteger, aprender a andar na rua, aprender a se cuidar depois de uma situação de violência, trocar documentos, aprender a viver, agir e encontrar pertencimento em seu gênero, validar e cuidar de nossas comunidades, aprender, ensinar, ir contra tudo pra tornar vida trans possível. Transições são pelos e buços, são batons, fotos de perfil, litros de silicone, banheiros, seringas, comprimidos, nomes, papéis, barbeadores, blusas, livros, protestos, sapatos lindos que não passam do número 38, anos e anos de movimentos sociais, vestidos, casacos, binders, textos — matéria se movendo, viva. É claro que, para quem olha de fora, isso cria a sensação de que uma identidade trans é pura artificialidade. Porque é, mesmo. Artificialidade e artesania de gênero. Mas o que as transições nos revelam, se olharmos com cuidado, é que a artificialidade é a condição do gênero, que toda experiência de gênero é produzida, inventada, fabricada com o tempo.
Em sua publicação de 1987 “A Tecnologia do Gênero”, Teresa de Lauretis nos introduz à noção de que nossas vidas profundamente generificadas não são apenas produtos de uma diferença natural, mas de múltiplas tecnologias sociais operando em conjunto. Essas tecnologias de gênero — como ela as chamou — existem em praticamente tudo. Ela parte de uma definição foucaultiana de tecnologia, onde tecnologias seriam quaisquer práticas que se repetem e se aprimoram de modo estratégico para atingir a um fim. Nesse sentido, pensar em tecnologias de gênero significa pensar que práticas humanas têm se repetido e aprimorado a fim de produzir gênero. Essa ideia nos permite compreender que as divisões rígidas de gênero que encontramos em múltiplas esferas de nossas vidas — divisões na arquitetura, na moda, em brinquedos, em produtos de higiene pessoal, na cultura, no cinema, na literatura, na linguagem e nas mais diversas expressões materiais e semióticas — não são apenas efeitos que buscam dar conta de uma diferença pré-existente, mas produzem essa diferença, constroem um mundo regido por uma certa concepção de diferença sexual.
É claro, as tecnologias de gênero não são de livre uso e apropriação por todas as pessoas. Elas são produzidas, reguladas, distribuídas, monopolizadas, compradas e vendidas dentro de normas rígidas. Elas são pensadas e desenhadas especificamente para certos tipos de corpos, são impostas e ritualizadas, e são sistemas produtores de violência. O mundo cisgênero é permeado por essa artificialidade tecnológica: chás de revelação, blusas para bebês, top 10 nomes para meninas, meninos para um lado, meninas para o outro, batons, chuteiras, sua primeira bola de futebol, sua primeira boneca barbie, cirurgias de redução dos lábios menores, veja o segredo que pode aumentar seu pênis, silicone, suplementos e esteróides, salas de esteticistas e cadeiras de manicures, academias e barbearias, mictórios, chuck norris, damares alves, sorria mais, mantenha a cara fechada, rebole, não rebole, metralhadoras, a primeira dama do governo do Brasil, hidratantes, desodorantes com cheiro de carro novo; essas tecnologias encadeadas fazem os cis-gêneros tanto quanto fazem os gêneros trans. Construir o direito de pessoas trans à autodeterminação de gênero significa garantir acesso às tecnologias de gênero que forem necessárias para que as pessoas vivam suas identidades plenamente. Parece estranho pensar que ter ou não ter uma blusa, usar ou não um delineado, ter cabelos mais curtos ou mais longos possa ser tão relevante para a identidade e o sentido pessoal de alguém, mas transicionar significa negociar reconhecimento; e somos reconhecides como homens, mulheres ou qualquer outra coisa, sempre segundo códigos normativos de masculinidade e feminilidade que nos posicionam em nossas relações. Essa necessidade de reconhecimento (não apenas por um desejo pessoal, mas por razões institucionais, sociais, coercivas e como estratégia de sobrevivência) transforma pessoas trans em intensas trabalhadoras de gênero, precisando construir estratégias especiais de produção e cuidado de gênero não apenas para si mesmas, mas às vezes para comunidades inteiras. Esse trabalho é frequentemente explorado pelo Estado, pelo mercado e pelo mundo cisgênero, que o utilizam para garantir a estabilidade de seu abandono organizado, e reforçar seus modos de regulação do gênero pela violência.
Gênero, é claro, tem como principal característica a divisão do trabalho. Quando se trata de trabalho reprodutivo, pessoas trans também têm demandas específicas. A maior parte de nossas instituições não têm estrutura para garantir a permanência e a prosperidade da vida trans. O trabalho de cuidados provido pelas famílias é organizado e voltado sobretudo para a continuidade do projeto heterossexual e cisgênero. A família nuclear é um regime reprodutivo, ela é um modo de organizar o trabalho de fazer e manter a vida, e seu formato muda segundo os fluxos e movimentos do Capital. Nossas famílias são formadas em pressupostos heterossexuais de mundo, e, para garantir a ordem social, buscam reproduzir a todo custo a cis-heterossexualidade como projeto de futuro. Não à toa, a retórica de Estado compreende a família (heterossexual e cisgênera) como núcleo fundamental e básico da sociedade, sem o qual toda a ordem social viria a ruir. Manter na instituição família uma pessoa que muda seu lugar nas relações de parentesco, é reiteradamente excluída do mercado de trabalho, e apresenta demandas econômicas, de cuidados, proteção e suporte que são incomuns para o mundo cisgênero e heterossexual é um exercício difícil, e que raramente se concretiza sem violência. As formas de cuidado providas pelo Estado para pessoas trans frequentemente tomam a forma de relações de controle, já que o Estado regula as tecnologias de gênero através de seu exercício de poder. Por exemplo, processos de transição oferecidos pelo Estado frequentemente exigem uma forte tutela médico-psiquiátrica que busca a adequação dos sujeitos às ideologias dominantes de gênero e às percepções cisgêneras do que é e deve ser a transição. Quando o cuidado é organizado numa matriz de dominação, ele frequentemente se transforma numa ferramenta de controle e violência, reduzindo autonomia e prosperidade em vez de construí-las. Mesmo as iniciativas mais libertárias de cuidado gerenciadas por pessoas trans, como a CasaNem no Rio de Janeiro ou a Casa Dulce Seixas na Baixada Fluminense, frequentemente enfrentam a violência de Estado e a falta de recursos. Porque dependem das ações de ativistas que dedicam suas vidas ao cuidado, casas de acolhimento, apesar de terem o potencial de operarem como espaços autônomos e seguros para pessoas trans, ainda exigem quantidades imensas de trabalho distribuído entre uma quantidade pequena de pessoas, e podem ter tanto acolhides quanto organizadories expostes a níveis adoecedores de stress e violência.
Foi lendo o conto “Bricolagem Travesti”, de Maria Leo Araruna, que eu tive algumas das minhas primeiras impressões sobre uma ética trans do cuidado. No conto, Maria conta sobre uma vizinhança de meninas travestis na “vila jaqueline”; povoada por meninas feitas de madeira, entulhos, retalhos e outras coisas mais que foram coladas, feitas com bricolagem, tiradas de todos os lugares, e às vezes trocadas entre elas mesmas. “[…] não havia limite para suas matérias, já que sempre teria o pedacinho de alguém solto por aí pronto para ser reciclado e reutilizado em outro corpo.” Elas são visitadas por um funcionário do Estado, Testão, que num movimento de violência de gênero quebra, tira, bate, recorta, reforma, molda, normatiza todas as suas partes, acabando com o mosaico diverso e a beleza característica da bricolagem das meninas. Tristes e revoltadas, elas arrancam os consertos, desfazem-se todas, para construírem umas às outras novamente, com atenção e sensibilidade aos desejos e necessidades umas das outras, sem impor, se ajudando a alcançar juntas “estados libertos, memoráveis, cheios de escolha.” A proposta ética de Maria Araruna nos lembra que a autonomia trans só pode ser construída por uma estrutura forte de ajuda mútua.
Se as pessoas cisgêneras querem pensar na construção de uma cultura de afirmação trans/travesti, elas precisam repensar todas as suas práticas de produção e regulação de gênero. Construir autodeterminação trans exige uma cultura capaz de coletivizar trabalho e cuidado, para desfazer as estruturas de trabalho e de gênero que impedem o pleno desenvolvimento das nossas vidas. Garantir acesso a tudo de modo livre e autônomo, fazer bricolagem mesmo, como propõe Araruna. Construirmos umas às outras com consideração e sensibilidade, para que estados libertos, memoráveis e cheios de escolha não sejam uma possibilidade apenas para pessoas trans, mas para todas as pessoas. Se as instituições dominantes nos obrigam a nos tornarmos trabalhadoras de gênero, contraproduzir relações de gênero em conjunto pode nos permitir mais felicidade, criatividade e descanso. Em vez de trabalho compulsório, a apropriação de códigos de gênero se torna uma via de expressão, de cuidado, de arte. Desfazer a estrutura compulsória de trabalho de gênero envolve não apenas o abandono dos desejos e posturas de regulação e policiamento das experiências de gênero de cada pessoa, mas também a criação de estruturas alternativas onde a liberdade é tornada não apenas possível mas desejável. Quando engajadas com uma consciência crítica acerca da realidade material do gênero, transições podem se transformar numa forma de recusa. Desejando uma vida sem violência e entendendo que os sistemas de gênero são sistemas produtores de violência, começamos a construir a força dissidente — uma greve de gênero. O trabalho de gênero é trabalho para o Capital. A greve de gênero é uma greve humana!
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Assinada por angie barbosa, essa coluna toma força e inspiração de movimentos anarquistas, feministas e trans/travestis. Essa coluna é um movimento. Somando-se a uma tradição de divulgação política anarquista, ela busca abrir espaço para que a radicalidade se mova expropriando e coletivizando teoria; abrindo caminhos para a educação política radical trans/travesti. Pois não resistiremos à violência sem antes entender seus movimentos, não nos radicalizaremos sem antes enxergar alternativas, não reconstruiremos o mundo sem antes abrir as portas de nossas imaginações para fabular em rebeldia contra o mundo cisgênero. Somente então podemos parar de pedir inclusão para exigir abolição. Revoltar-nos contra tudo que nos for imposto, expropriar tudo que nos for possível, coletivizar tudo que nos for garantido, formar redes em todos os lugares que nos forem acessíveis e cuidar de todas que as nossas potências alcancem, para garantir hoje — com toda dor e prazer do processo — as forças que construirão nosso amanhã!
angie barbosa é travesti, artista visual, integrante da coletiva wonder de teatro. Se dedica de modo autônomo aos estudos feministas e aos estudos queer/trans e busca realizar iniciativas de educação popular sobre gênero e sexualidade para pessoas trans.