Um ensaio de Simoni Rodrigues dos Santos
Simoni Rodrigues dos Santos. Professora graduada em Letras/ Português e Espanhol, especialista em Educação Especial com ênfase em Libras e mestranda em Estudos Literários.
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O pacto social no romance Sertão de Sangue, de Romulo Nétto
Introdução
Romulo Nétto, autor mineiro radicado em Cuiabá, ao compor a obra Sertão de Sangue vale-se de sua vasta experiência literária, consciência geográfica e, ao mesmo tempo que enreda uma trama fantástica, conferindo à obra características únicas. As estratégias narrativas que compõe o enredo denotam ao texto ficcional um poder de convencimento que envolve o leitor em uma leitura frenética e pulsante; tais configurações são comuns aos textos produzidos no fim do século XIX e início do século XX, fase fortemente marcada pela ruptura com a tradição. Neste sentido, para evidenciadas esse movimente na obra Sertão de Sangue se fez necessário um conhecimento amplo do objeto artístico, pensaremos a obra como um fenômeno romanesco. A partir dessa compreensão, debruçaremos em uma análise que corrobora para entendermos o valor composicional do romance em questão.
A narrativa é iniciada por meio da contemplação do título Sertão de Sangue, que subjetivamente nos posiciona dialogicamente com o fenômeno enredado. Comumente, as narrativas pós-modernas apresenta-nos: uma categorização do apogeu do narrar e a um narrador em primeira pessoa cuja perspectiva é apresentar aos leitores um sertão conhecido, partilhando com eles as experiências e os pensamentos, quase que em uma relação biográfica dos acontecimentos; elucida um narrador em terceira pessoa que se apresenta na obra como narrador nomeado ou apresentado na condição de narrador, que vai se diluindo numa relação íntima com os pensamentos do personagem.
A obra em questão enreda uma narrativa memorialista que reivindica o estatuto da escrita, no entanto temos uma intricada relação que acontece por meio de uma tensão dualística: a enunciação do narrador categorizado no romance que é um gênero da escrita e o monologo que direciona à enunciação e valoriza a força da palavra, movimento crucial em que o narrador se coloca explicitamente e intrinsecamente na relação com o objeto.
O narrador sinaliza um diálogo com outras formas narrativas e propõe uma análise da linguagem como um importante recurso para referenciarmos a dualidade entre o bem e o mal que coexistem no personagem Zé das Mortes. Neste ínterim, evidencia-se também a tentativa de narrar a construção da trajetória de um personagem que se sustenta por ser explicada de maneira avessa (lado mundano e demoníaco e a tensão dessa condição entre o bem/Deus e o Mal/Diabo). Que compreende um problema ideológico ético e, ao mesmo tempo que, questiona a aproximação de algo que rompe com a tradição, por ser julgado como inaceitável.
Dessa forma, para validarmos o dualismo existente na obra, proporemos um diálogo com duas linhas de pensamentos que basilarmente compõe a análise em questão: o plurilinguíssimo proposto por Bakhtin e o individualismo literário enfatizado por Goldman, revelando com isso, a natureza dialógica das obras Sertões de Sangue e Grande Sertões: Veredas e os elementos que as tornam social e historicamente convergente e, ao mesmo tempo distintas.
Análise da obra Sertão de Sangue: entre o fantástico e o referencial
A obra ficcional Sertão de Sangue, narra a trajetória de um sertanejo nascido e criado no interior de Minas Gerais, homem matuto temente a Deus sem muitas ambições, mas “que trazia a alma marcada pra ser entregue ao coisa-ruim” (NÉTTO, 2013, p.71). O protagonista é apresentado como um sobrevivente, por sua destreza e rara avidez ao sobreviver em um sertão inóspito de sol caustico sua ambição era escarafunchar o céu, esperando a primeira estrela aparecer: “Amava a noite como nós amamos as mulheres” (NÉTTO, 2013, p.08). Verdadeiro retrato do homem do sertão, mas o que lhe destoava dos outros era o fato de: mesmo sendo um homem simples e sem muitas ambições possuía uma riqueza inestimável, não se sabe ao certo de onde vinha o dinheiro, talvez tivesse tirado a sorte grande nos garimpos dos Gerais.
Ninguém sabia de onde arrancava o dinheiro que usava para pagar, religiosamente as despesas que fazia nas vendas do vilarejo. Ladrão ele não era, pois jamais arredara o pé da região. Trabalhar mesmo, aquele trabalho duro, suado, empreitadas de sol a sol, não era muito chegado. (NÉTTO, 2013, p.08)
O autor reivindica à obra as estratégias memorialísticas que são vivenciados na tessitura da narrativa, através da linguagem poética e figurativa que explora e valoriza a beleza humana, rompendo a barreira da prosa por conferir a leveza e sinestesia presente na poética que transcende a uma única categorização do gênero, tornando-a múltipla. Com isso, podemos reconhecer um romance com apelo poético, a palavra em si revela-se transgressora e não está retida em um único significado, escorre em um formato referencial mediada pela racionalidade técnica em que há força da verdade e, ao mesmo tempo que a questiona.
O narrador conduz com propriedade as desventuras do personagem, oportunizando o protagonismo do personagem ao mediar um monologo interior que possibilita ao leitor conhecer intimamente os pensamentos do homem sertanejo, “Zé das Mortes” não era homem de cometer excessos, cultivava uma vida pacata quase que entendia a linguagem dos animais, fazendo daquele sertão-cerrado sua morada onde os rios entranhavam-lhes as veias, traduzindo a pureza que principiava a alma daquele sertanejo.
Assim era aquele matuto: um sábio da natureza. Precoce em seus conhecimentos sobre as flores, frutas, pássaros e bichos rastejantes ou não. Ouvido apurado distinguia de longe por onde uma onça desavisada preparava seu pulo, ou a cascavel aguardava sua comida. (NÉTTO, 2013, p. 09 e 10).
A experiência documentária do autor explora com propriedade a observação da vida sertaneja, o envolvimento apaixonado pelos detalhes, a versatilidade de adentrar no pensamento do matuto e desvelar sua rusticidade, tudo se apresenta de forma plural, que subtrai do livro à matriz regional para retomarmos o que Antônio Cândido chama de: “Grandes lugares-comuns sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, – para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o Sertão é o mundo.” (CÂNDIDO, 2006, p.112).
Essa estratificação confere à obra um teor referencial, sobre esse aspecto individual podemos reconhecer as questões históricas e sociais apresentadas, com as quais são determinadas “sua especial unicidade.” (GOLDMANN, p.436).
No entanto, a unicidade proposta na obra, propões uma contraposição com o que Goldmann elucida quando trada do caráter único conferido às literaturas produzidas na contemporaneidade. Pois a narrativa discursiva do personagem Zé das Mortes, introduz e organizar o plurilinguismo presente no romance, demostrando a existência das vozes sociais no processo de criação. Isso significa dizer que, as reflexões e intenções do autor também acontecem pelas palavras dos personagens que, embora possuam autonomia semântico-verbal e perspectiva própria, acabam por se tornar a segunda linguagem ou voz do autor. Sobre isso, Bakhtin exemplifica que, “o plurilinguismo” social é introduzido tanto nos discursos diretos das personagens como no discurso do autor. Todavia, essa visão dualística entre autor e narrativa trava um embate no interior da obra quando:
funda o autor enquanto mediação constitutiva através da qual a consciência possível de um grupo se encarna de maneira coerente na obra literária. Inversamente, essa mediação constitutiva é o meio pelo qual o sujeito individual, imediatamente criador, entra em acomodação, em equilíbrio e assimila, sempre em sentido piagetiano, as categorias mentais possíveis do grupo, sujeito transindividual. Não há, portanto, homologia entre a estrutura biográfica ou sociológica do autor e aquela do grupo, mas entre as estruturas mentais categoriais da obra enquanto virtualidade daquelas do grupo. (GOLDMANN p. 430)
Romulo Nétto se apropria de estratégias fantásticas para enredar a história de Zé das Mortes, traduzindo a simplicidade do homem sertanejo, característica essa que, não tinha nada que ver com ingenuidade, tendo em vista que o personagem é apresentado como astuto e conhecedor dos segredos do sertão, pois ao menor vestígio de ameaça acionava seus instintos de sobrevivência vindos de “não sei onde”. Acreditava em alma penada, mas medo delas ele não tinha. Foi por essa coragem, destreza e capacidade de se esgueirar pelo sertão-cerrado sem deixar vestígios, que Zé das Mortes chamou a atenção do coronel Izabelino, “até parecia que ele trazia olhos na parte de trás da cabeça tamanha a percepção que tinha de sua localização” (NÉTTO, 2013, p.13).
Coronel Izabelino, figura representativa do mal, homem que quando seu nome era pronunciado no sertão causava arrepio, pois trazia consigo muitas mortes e mandos delas.
-– vou logo informando: aqui vosmicê não tem querer. Foi escolhido para finalizar treze. O primeiro de cujo nome me lembro é o Jabirição. O segundo basta ouvir as últimas palavras do agonizante e daí vosmicê seguem frente, com cautela. Eles têm que ser matado na ordem. O que abre caminho pra que vosmicê descubra quem encabeça a lista. Se matar de modo diferenciado esse cramulhão que ponho em suas mãos vai ficar de cabeça para baixo e aí sua família morrerá de morte horrível, sacrificável. (NÉTTO, 2013, p.17).
Zé das Mortes tenta desfazer a situação, alegando não ter família, por vez o coronel, enfaticamente diz: “não tem mais pretende ter e para mim num interessa … vosmicê não carece de escolha. É! assim seje!” (NÉTTO, 2013, p.18).
Todas as ações eram anunciadas pelas vontades do coronel, “onde tudo era executado de forma tal que mais parecia uma engrenagem, tamanha a sincronia.” (NÉTTO, 2013, p.19). “Candidato viável aos benefícios que a Sociedade e o Estado devem reservar aos seus prediletos”. (CANDIDO, 2004, p. 113).
Essa passagem da narrativa evidencia um possível pacto feito às avessas, que diferentes de outros pactos fáusticos, nos quais os escolhidos desejam tal feito, temos como exemplo: a obra Doutor Fausto (1947) do alemão Thomas Mann, na qual percebemos há menção do pacto; e no romance brasileiro temos Grande Sertões: Veredas (1956) do escritor Guimarães Rosa que também incide essa temática, no entanto com uma composição que se assemelha com a obra de Nétto.
O autor reivindica na obra um lugar de enunciação e a palavra como direito de todos, objetivando com isso, o enfrentamento e um esforço em mostrar o ser humano real, tais afirmações se revelam por meio do discurso direto. A composição do personagem Zé das Mortes é repleta de muita subordinação, rebeldia, independência e coragem. Tais adjetivações promovem uma ascendência comportamental do protagonista que, de forma genial supera a problemática da técnica, ao apresentar uma linguagem que é capaz de tensionar e dizer o que não cabe nas palavras, valorando expressivamente os vocábulos.
Podemos destacar alguns elementos que constituem o romance: a apresentação de um narrador fiel que cuidadosamente propõe a escolha geográfica, as emoções e o tempo como processo criador; o requinte no qual a obra é produzida respeita a significação da cultura, conferindo ao personagem um nível vocabular simplório que aproxima da realidade exemplificada. A linguagem configura a natureza, valida o ser humano, tornando a obra genial e se desdobra como uma metalinguagem do fazer, a fronteira entre o intuitivo e racional, estabelecendo o rompimento com a tradição.
Para entendermos melhor essa problematização, destaca-se a importância e a necessidade do domínio de dispositivos analítico por parte dos leitores, para a percepção desses dois momentos da narração: o plano do narrador, com sua perspectiva expressiva e semântico-objetal, e o plano do autor que fala de modo refratado nessa narração. E é essa percepção do segundo plano que permite que tenhamos a compreensão da obra como um todo, evidenciando a partir de exemplos da obra dostoievskiana, que a compreensão da obra e a percepção desse segundo plano só acontecerá plenamente, se o leitor tiver conhecimento também do contexto sócio-histórico da época e das condições de produção do autor, bem como da visão de mundo vigente no período, entre outros elementos.
Há uma cisão dentro do romance, demostrado uma racionalidade no que diz respeito ao “pacto”, essa nova configuração pactual aparece como um problema revelador, rompendo com o tradicional. É a modernidade invertendo o paradigma para superar a tradição, não mais dando ênfase à força, nem tão pouca às questões éticas, pois a narrativa nos revela a angústia e a busca por conhecimento que é surpreendentemente encontrado pelo avesso.
O autor se posiciona e verbaliza diante das ações do personagem Zé das Mortes e compões um duelo interior que coexiste nos pensamentos do personagem, travando uma batalha entre o bem e o mal, no qual mal se torna importante e necessário. No plano de enunciação apresenta-nos um protagonista amadurecido e vivido, deslindando as narrativas entre as vozes do narrador e personagem, separando-as e demarcando-as o que possibilitada uma nítida distinção. Os apelos dos sentidos; as figuras de linguagem; a prosa como defesa do romance; a necessidade da sucessão e o questionamento do monologo interior, não transpiram somente a razão, mas sim, emoção. Quando Zé das Mortes conhece o enredo de sua sina – findar treze – em um primeiro momento, não compreende o motivo de ter sido escolhido para tal desventura. “Matar por matar não tinha nenhuma sustança. Agente mata quando a vida corre perigo. Adiantaria argumentar com aquele velho caquético e pançudo? Não! Não adiantaria. recusar o serviço é receber condenação de morte sofrível”. (NÉTTO, 2013, p. 20).
A vida jagunça começa a ser desenrolada, caracterizada nas andanças e na vivência reclusa nos sertões-cerrado dos Gerais, o ambiente caustico, inóspito e sofrido transformava pouco a pouco aquela pobre alma, cujo destino fora traçado para cumprir os desejos do poderoso coronel Izabelino.
A barba crescerá nos dois últimos meses. Deixando de propósito. Passei pintura nos cabelos. Quando olhava no espelho, não me via, mas sim outro, um desconhecido assassino. Confesso que gostava do que aparecia bem rente a mim, o outro eu mesmo tava aprovado. ( NÉTTO, 2013, p. 40).
Romulo Netto, revela nas páginas do livro, uma narrativa que dialoga com inúmeras outras, embrenhadas sertão a fora, leitor cativo de Guimarães Rosa, o Velho Jagunço, assim como era conhecido, mergulhava em seus pensamentos e apropriava-se de suas lembranças dos lugares e experiências vividas. Mineiro de Paracatu, ambienta seus romances, contos, crônicas e poesias através dessa consciência geográfica e historiográfica, o que facilita o entendimento de que há uma relação de cronotopo entre os ambientes citados no desenvolvimento da narrativa. Tais premissas, podem ser referenciadas na seguinte passagem:
Atravessei o rio São Marcos, aprumei pro noroeste do Goiás e me enfiei novamente no Gerais lá por riba, bem acima. Casquei as esporas no cavalo e cacei o rumo de Gaúcha do Norte, de lá pro saco das Bandeiras foram quinze dias de sol a sol, quase sem parada programada. (NÉTTO, 2013, p. 50).
Em consonância com as ideias de Bakhtin, podemos inferir que a narrativa apresentada por Romulo Netto revela teor intertextual com outras referências, afirmando a existência de um discurso plurilinguístico introduzido no romance, “o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções do autor” (BAKHTIN, 1990, p.127), ou seja, trata-se de uma palavra bivocal, que exprime a intenção direta do personagem que fala e a intenção do autor.
A narrativa em terceira pessoa dialoga com o ritmo frenético do monologo interior, pois remete-nos à uma consciência ímpar dos pensamentos do protagonista. Essa relação guia-nos ao ápice do romance, explorando a linguagem rustica e a essência do homem do sertão. Ou seja, tanto no objeto da narração quanto no narrador, o autor se realiza e realiza o seu ponto de vista, envolto de qualificação e sua tonalidade.
A existência de temas como: prostituição, a relação de poder e a disputa por terras, o descaso político das regiões periféricas, a condição quase que servil daqueles, mesmo tentando manter sua dignidade, diante hostilidade, acabam por se convencer de que não poderiam ser de diferente, pois os desfavorecidos naquele tempo eram:
Os pobres cada vez mais pobres, escravizados pela mina de ouro. Os ricos cada vez mais ricos nadando sobre o sangue de negros, brancos e agora dos chegantes japoneses que viam no cerrado a promessa de abastecer o mundo com a soja. Ricos! Malditos ricos! Retrato falado do barrigudo coronel Izabelino. (NÉTTO, 2013, p. 48).
Destinados a essa condição muitos se sujeitavam ao desmando dos coronéis, perdendo suas terras para os grandes latifundiários. Zé das Mortes, mesmo seguindo sua sina, por vezes se questionava sobre sua parcela de culpa no que estaria acontecendo, que intuito teria o coronel ao escolher justamente sua pobre alma. Foram indagações como estas, que atiçaram a curiosidade do sertanejo a seguir com o plano macabro do coronel. Tais suposições podem ser referenciados depois do quinto sacramento, na seguinte passagem:
Quanto mais encafifava tentando descobrir a razão daquela intricada trama menos entendia. Como aquele homem soubera de minha mísera existência? Sempre fui figura apagada, que vivia naquelas terrinhas sem fazer mal a ninguém. (NÉTTO, 2013, p. 52).
A composição estética do personagem Zé das Mortes, perfaz uma emblemática e curiosa ascensão comportamental do ser, quando o protagonista toma ciência de que todos os vitimados, são abastados e que ganhavam a vida com o suor dos miseráveis: dona de bordel, filho do prefeito, amante, políticos, jagunços e coronéis. A partir dessa dedução, o personagem começa a se intitular “fazedor de justiça”, a mudança de comportamento é visível, pois quando a ingenuidade pairava sobre seus pensamentos, todo vez que cometia um crime, era em Deus que ele elevava suas preces, fazia “o sinal da cruz três vezes e sumia no mundo” (NÉTTO, 2013, p. 21). e se questionava: “que mal fiz a esse homem? O que ele viu em mim a tal ponto de escolher minha pobre pessoa para ser o distribuidor de suas tortas justiças?” (NÉTTO, 2013, p. 27).
A representação desse homem real apresentado às avessas, apresenta nos estratos superficiais do romance um ser em transformação, que é reconfigurada pelo tratamento simbólico: “Do mundo documentário ou semidocumentário que se desprende em cada entrelinha um universo fabuloso, que enquadra o verdadeiro problema do livro”, qual seja: “o dilaceramento de um homem tomado entre o bem e o mal, debatendo sem repouso a validade de sua conduta” (CANDIDO, 2006, p.11). Ou ainda: “Homem que passa a vida espantado com um ente que surgiu de dentro dele a determinada altura, surpreendendo-o, levando-o a sentimentos que não condiziam com a sua existência corriqueira.” (CANDIDO, 2006, p.11) .
O pacto: diálogos literários entre Sertão de Sangue e Grandes Sertões: Veredas
O romance contemporâneo dialoga com a tradição e, eventualmente causa conflitos com objetividade literária, impactando a versão da impossibilidade em narrar algo especial e particular. Pois diferente do que é concebido, podemos destacar que na obra Sertão de Sangue, Romulo Netto se atenta em superar a tradição e, ao mesmo tempo dialogar com o já conhecido, reivindicando um lugar completamente desconhecido a ser desvendado. Contrapondo o que Lucien Goldmann chama de “reificação”.
Um dos temas que fundamentam o romance é a tensão apresentada nas tentativas de resolver os dilemas do sertão, tais premissas, também são evidenciadas na obra Grandes Sertões: Veredas do autor Guimarães Rosa. Nesse sentido, referencia-se por meio dessa análise um embate dialógico com pacto fáustico que, desde a formação do mundo e a criação do homem na figura de Adão até o herói goetheano, vislumbra uma posição assertiva, presumindo um ser completo, dotado de desejos e pensamentos consistentes. Inferimos com isso, que o motivo crucial de os personagens Zé das Mortes e Riobaldo se resignarem para a realização do pacto, não acontecem em condições semelhantes ao pacto fáustico, pois os personagens contemporâneo não tiveram a opções de escolha e, tão pouco , assentiram o pacto, sendo eles forçados a tal situação.
Ao enredar a jornada de Zé das Morte, o autor nos apresenta a imensidão do sertão-cerrado, em diversas passagens, revelando um possível topos, onde é desenvolvido o drama do personagem e a tentativa de cumprir sua sina – findar treze – que miticamente se firma por meio de um pacto, que em tese não se prova no texto, mas também não há um desfecho que comprove a não desistência do empoderamento do “cramulhão engarrafado” entregue ao protagonista pelo coronel Izabelino antes de iniciar a vida jagunça. Diante da possibilidade da incidência de um pacto que pusesse fim ao derramamento de sangue no sertão, o protagonista aceita sua condição e, a partir disso, é reconhecido o desejo de pôr um fim sua sina.
Semelhante a essa narrativa temos a trajetória do personagem Riobaldo que, na esperança de manter a paz no sertão, o ex-chefe Urutú-Branco não deixa recordar que a paz conquistada após a derrota dos Judas é apenas uma situação instável, ameaçada a todo o momento pela deflagração de uma nova guerra:
Estão aí, de armas areiadas. Inimigo vier, a gente cruza chamado, ajuntamos: é hora dum bom tiroteiamento em paz, exp’rimentem ver. Digo isto ao senhor, de fidúcia. Também, não vá pensar em dobro. Queremos é trabalhar, propor sossego. De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. (ROSA, 1980, p. 22).
Esse dúbio dilema entre o Bem e o Mal, ecoavam nos pensamentos dos personagens Zé das Mortes e Riobaldo. O monologo que compõe a narrativa de Zé das mortes, nos permite reconhecer essa tensão maniqueísta, através dos questionamentos: seria ele guiado pelo “cramulhão”. Essa possibilidade assombrava a pobre alma, instinto de sobre vivência ele tinha de sobra, mas a audácia e o sangue frio, foi adquirido depois de manchar o sertão de sangue.
E o som ficava azuretando minhas orelhas: __ João Falastrão! João Falastrão! Pega Ladrão! __pra mim isso já era coisa do cramulhão preso na garrafinha, aquela, aquela mesma que o coronel Izabelino me obrigou a receber nas minhas mãos que ainda não eram de matador profissional, sequer de principiante, senão de bicho vestido de calças que passava a maior parte das noites conversando e admirando estrelas, namorando a lua. (NÉTTO, 2013, p.39)
Para evidenciarmos as referências entre as obras Sertão de Sangue e Grande Sertões: Veredas, tratarem os de um assunto em comum entre as narrativas: a contraposição ao maniqueísmo e a incidência do pacto. A narrativa proposta na obra de Guimarães Rosa retoma o tema da vingança e acompanha a saga do personagem Riobaldo que após a morte de Joca Ramiro, deixa a Guararavacã do Guaicuí e segue em uma obstinada busca por justiça iniciada por Diadorim. É a partir desse momento que as deduções sobre a existência do demônio e a possibilidade do pacto começam a ecoar: “Eu penso é assim, na paridade. O demônio na rua…ah, pacto não houve. Pacto?” (ROSA, 2001, p. 328).
Romulo Nétto avidamente conduz trajetória do personagem Zé das Mortes, em uma acessão comportamental que propõe uma reflexão no momento que, temendo o inevitável o protagonista resolve enfrentar seus medos:
Com calafrio subindo e descendo a cacunda resolvi dar espiadela no de saco de estopa pra ver se o danadinho continuava quietinho no seu canto. Quando abri enorme facho de luz se acendeu. Benzi três vezes enquanto trancava o danado no seu lugar e borrava pernas abaixo. (NÉTTO, 2013, p.39).
Ao compararmos as obras embora as tramas discursivas sejam distintas, produzidas em planos diferentes um do outro, tanto no tempo quanto no espaço, verifica-se que há uma consonância no que diz respeito ao pacto, pois ao analisar esse aspecto composicional das narrativas podemos inferir que, o pacto não acontece em situação semelhante ao “pacto fáusticos” elucidado por Thomas Mann na obra Doutor Fausto. Tais referencias podem ser identificadas pelo fato de os personagens não assentirem o pacto, ou não tiveram ciência em um primeiro momento do que estaria acontecendo, somente quando houve a transformação comportamental de ambos é que podemos concluir há possibilidade de tal feito.
Voltando ao texto, depois da passagem que em tese anuncia a aceitação do pacto em Sertão de Sangue, Zé das Mortes percebe que sua intuição embora aguçada pela sabedoria dos homens sertanejos, ficara ainda mais certeira, jamais errava o bote. E mesmo pensando em desistir, o desassossego acompanhava sua alma prometida ao coisa-ruim “a sede de matar não dominava totalmente, apenas o medo de ser vítima das loucuras do coronel Izabelino” (NÉTTO, 2013, p.44). Em Grandes Sertões: Veredas, Riobaldo também percebe as consequências de sua decisão: “No peso ruim do meu corpo, eu ia aos poucos perdendo o bom tremor daqueles versos de Siruiz?” (ROSA, 2001, p. 332).
Como bom jagunço que se tornara, Zé das Mortes não desgrudava da papo-amarelo, nem do “tresoitão”, rasgou a sertão-cerrado, virando riachos e pequenos córregos até chegar e quando chega em seu destino; retoma as memorias de menino, reconhecendo o venho cerrado, suas árvores retorcidas e os frutos com o sabor da infância. Conferindo à estória uma leveza terrena de sabores, cores e aromas sinestesicamente fascinante, empoderando o leitor por meio da narrativa.
Nos pensamentos lhes afloraram o desejo de acabar com sua sina. Não mais pelo fato de encerrar sua tragédia pessoal, mas para proteger sua família. Mas ciente de que ao retomar sua jornada carregaria “a certeza de, em breve estar ajustando contas, com o parente do bode-preto.” (NÉTTO, 2013, p.58), nessas andanças Zé das Mortes fez amigos, amou um amor que nunca sentiu antes e odiou ainda mais todos aqueles que representavam a figura do maldito coronel Izabelino.
Atrelado a esse aspecto remetemo-nos a uma prenunciação de outro discurso, existente na obra Grandes Sertões: Veredas, quando o protagonista passa a transmitir ao seu interlocutor o lado mais avesso de Riobaldo: “O ódio de Diadorim forjava as formas do falso. Ódio a se mexer, em certo e justo, para ser, era o meu; mas, na dita ocasião, eu daquilo sabia só a ignorância” (ROSA, 2001, p. 379). Riobaldo, de certa forma, toma para si o ódio pela morte de Joca Ramiro. O amor, nesse contexto, é adormecido pelo espírito de vingança que recobre os dois companheiros – embora para Riobaldo haja um espaço para a reflexão sobre a vingança.
Podemos perceber que tais pensamentos se configuram também no personagem Zé das Mortes, quando ele trava um embate de consciência com o mais recente eu, que surgira com o desejo de vingança. A ingenuidade deu lugar a um Zé das Mortes, matuto prometendo que não ceifaria uma vida sem saber o motivo e o porquê de as vítimas serem marcadas para morrer. Por mais que vasculhasse sua mente não conseguia compreender, lembrou-se de que quando criança prometerá diante da crus dos pais e irmãos assassinados que “dessa hora em diante não descansaria enquanto não descobrisse os motivos das mortes … Matar ou morrer. Carregava comigo, nas costas, a fatídica sina.” (NÉTTO, 2013, p.67).
não sei quais diabos acabaram por me conduzir bem pra leste, onde o mato era mais denso, os rios mais caudalosos e piscosos. Onde tudo era mais sertão que o próprio descuidado sertão dos Gerais das Minas. Ali o homem não tinha colocado sua cobiça. (NÉTTO,2013, p.68)
A profissão forçada, obriga Zé das Mortes a pensar com o indicador. Muito mais do que com a cabeça. Atira primeiro e pergunto depois.
Sei que não existe lugar no céu à minha alma. Pecador de longa data, que sem querer se apaixonou pela profissão. Inda que de quando em onde ponha o lado as durezas da vida e deixe o coração acelerado dar seu palpite. Quase sempre sou condenado ao fogo eterno. Sina triste, desnaturada, da qual por mais tente livrar não encontro o exato caminho. (NÉTTO, 2013, p.70).
A cada nova descoberta, a mudança de comportamento do personagem se torna mais visível, a dúvida entre o bem e o mal, se afastava cada vez mais. Não que isso fosse vontade plena, mas o inconsciente se tornara consciente, suas emoções pulsavam em ódio, em saber que muito sua vida lhe fora roubada, para justiçar a vontade do coronel Izabelino.
Em Grande sertões: veredas o pacto é mencionado na seguinte passagem: “Achado eu estava. A resolução final, que tomei em consciência. O aquilo” (ROSA, 2001, p. 434). Depois da resolução ele concretiza o fato nas Veredas-Mortas, porém sem avistar a figura do oculto, somente vivenciando sensações relacionadas a esse universo pactário – o frio, o tremor e a própria sensação causada pelo lugar -. O ser com quem firma o pacto é fruto de sua consciência: “Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia” (ROSA, 2001, p. 436).
A tradição fáustica do pacto é notada em alguns comentários feitos pelo personagem em Sertões de Sangue: “Com calafrio subindo e descendo a cacunda resolvi dar espiadela no de saco de estopa pra ver se o danadinho continuava quietinho no seu canto. Quando abri enorme facho de luz se acendeu. Benzi três vezes enquanto trancava o danado no seu lugar e borrava pernas abaixo”. (NÉTTO, 2013, p.39).” O frio, a escuridão, a encruzilhada são elementos pertencentes à tradição que integram o cenário no qual o pactário é um sujeito em formação.
Ao contrário do que acontece no pacto tradicional, o pacto evidenciado por NÉTTO e ROSA “coloca como problema o sumiço do sujeito ou, pelo menos, de todas as categorias que sustentam tradicionalmente a ideia desse sujeito” (ROSENFIELD, 2007, p. 248). O protagonista cogita a existência do diabo: “Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia” (ROSA, 2001, p. 436). Mesmo sem a presença física do diabo, o protagonista tem a sensação de uma transformação: “Meu corpo era que sentia um frio, de si, friôr de dentro e de fora, no me rigir. Nunca em minha vida eu não tinha sentido a solidão de uma friagem assim” (ROSA, 2001, p. 439).
A narrativa contemporânea depreendida por Nétto, retoma essa reflexão entre o bem e o mal, que coexistiam no pensamento do personagem Zé das Mortes. A mudança do comportamento do personagem possibilita evidenciarmos tais afirmações, pois acreditava ser agora “fazedor de justiça”, mesmos que “lá de cima Ele por deveras jamais haveria de conceder-me seu tão ansiado perdão.” (NÉTTO, 2013 p.85). “Imaginei como seria meu primeiro assassinato na capital do estado. Confesso que não senti nenhum tremor ou arrepio na coluna. Isso era primordial pra boa realização da tarefa.” (NÉTTO, 2013, p.84).
Zé das Mortes por vez foi aconselhado a se livrar do “cramulhão” carregava consigo, decidira por conta própria que não, dizendo em tom ameno: “nem o cramulhão ia me aguentar” (NÉTTO, 2013, p. 47). Sua sina estava por se cumprir faltava apenas um, que por ironia do destino e para alívio de sua alma condenada, se tratava do coronel Isabelino: “fadado a acabar com a triste missão de matar treze pessoas, pensei bastante antes de tomar a atitude que colocaria em risco a vida de toda a família e ela não tinha nada a ver com minhas loucuras, ou escolhas do destino.” (NÉTTO, 2013, p. 92).
Conformado com sua condição Zé das mortes mergulha em uma profunda certeza “pertenço a esse sertão de sangue. Muito da vermelhidão esparramada por todos os cantos saiu do cano de minhas armas.” (NÉTTO, 2013, p.104). pensou em desistir, mas aquela voz ecoava: “ter piedade plena do coronel Izabelino? Nhor que não! Arruinara minha vida, enfinhando minha pobre pessoa até o fundo do poço, apenas para cumprir ordens descalabradas. De uma lada ele não tinha tino nos miolos, do outro tino não tinha eu obedecendo” (NÉTTO, 2013, p.106), “o cramulhão não dava um minuto só de sossego ele também me escravizava” (NÉTTO, 2013, p.106).
O autor revela nas últimas ações do personagem Zé das Mortes o real motivo de sua sina: quando jovem o coronel Isabelino se apaixonou pela mãe de Zé das Mortes, ela posseira na região, não possuía documentos das terras onde viviam, se tornando alvos fácil dos coronéis da época. “foi assim que a maior parte da família passou deste para o outro lado” (NÉTTO, 2013, p.108). O coronem ao ser rejeitado não aceitou tal afronte, em consequência disso todos aqueles que ele confidenciou o segredo, teria morte terrível: amantes, amigos políticos, jagunços até chegar ao próprio em carne e osso.
Mesmo diante do inevitável fim, o coronel em uma última e misteriosa fala comentou: “a felicidade tem seu preço” (NÉTTO, 2013, p.102). O tom irônico presente naquelas palavras não deixava dúvidas, a felicidade em afastar-se definitivamente do Sertão de Sangue teria um preço a ser pago.
A transformação de Riobaldo e Zé das Mortes, guiadas pelo percurso da justiça, permitiu-lhes o aprendizado que é transformado em monólogo na tentativa de compreender e elaborar a experiência que ainda os transformam. As culpas, o medo, a raiva e tantas outras sensações compõem sua travessia e os fazem perceber que, o que “existe é homem humano. Travessia” (ROSA, 2001, p. 624).
Sertão de Sangue: o rompimento com a tradição maniqueísta do bem e do mal
Para compreendermos essa relação de rompimento com a intensão dualística do maniqueísmo, buscamos elucidar a relação paradoxal existente entre Deus/Bem e o Cramulhão/Mal no romance em questão, demonstrando os afastamentos com as concepções maniqueístas.
doutrina religiosa fundada pelo persa Mani (Manes ou Manichaeus) no século III d.C. as reflexões maniqueísta consiste em: um pretenso racionalismo, certo materialismo e, principalmente, um dualismo radical na concepção do Bem e do Mal, entendidos não apenas como princípios morais, mas, sobretudo, como princípios metafísico-ontológicos, tendo uma natureza geral e necessária que é própria a todos e a cada um dos seres. (OLIVEIRA, 2014, p.142).
De acordo com Giovanni Reale e Dario Antiseri (1990, p. 413), “os maniqueístas afirmaram a existência de dois princípios diversos e adversos entre si, mas ao mesmo tempo, eternos e coeternos. Duas naturezas e duas substâncias: a do Bem e a do Mal”. Em outros palavras: as concepções maniqueístas declararam e consideram duas causas primeiras conflitantes desde sempre: uma, a do Mal ou princípio da obscuridade das trevas, a outra, a do Bem ou princípio da luz. Importante destacar que, sendo está uma concepção oriental, abre vasto espaço para a fantasia e a imaginação o que podemos perceber no fragmento do discurso de Santo Agostinho:
Eis os pontos principais da sua doutrina: desde a eternidade existem dois princípios, o do Bem e o do Mal. O primeiro, que se chama Deus, domina o reino da luz, e Ele mesmo é luz imaculada, que só pela razão e não pelos sentidos se pode perceber. O segundo chama-se Satanás, rei das trevas, e é mau quanto à sua natureza, pois é matéria infeccionada. Ambos comunicam a sua substância a outros seres, que são bons ou maus conforme sua origem. Houve luta entre os reinos da luz e das trevas. Os demônios arrebataram partículas de luz. Satanás gerou Adão e comunicou-lhe essas partículas, que seriam as almas dos homens. Deus, para libertar a luz do cativeiro da matéria, criou, por intermédio dos espíritos antagonistas dos demônios, o Sol e a Lua, os astros e a terra. Esta é de matéria inteiramente corrompida. (AGOSTINHO, 1973, p. 62).
As considerações do pensamento maniqueísta, além de considerar que o Bem e o Mal, concebe essa proposição a todos os seres em geral. Assim, vale dizer: “o homem” não seria totalmente responsável pelo mal que faz, e por isso, não ´poderia ser totalmente livre. Por vez a condição do mal seria imposto, arbitrariamente. Todo mau cometido pelo ser humano, por sua vez seria “coagido”, “importunado” pelo autor do Mal (O cramulhão).
Em oposição, o homem travaria uma batalha infindável para destruir em si e nos outros a manifestação do Mal. A espiritualidade da alma seria aprisionada de forma refratada a luz, propondo ao ser humano a condição primeira, de se libertar das trevas, por meio da crença em Deus.
Em Sertão de Sangue, a bem e o mal não fazem parte de uma figuração retórica, mas de aspectos representativos das “referênciais” do Bem e do Mal. Dessa forma Romulo Nétto, apresenta-nos uma configuração do Bem e o Mal diferente do maniqueísmo, por não constituir essa relação literal maniqueísta. Há uma hibridização plural intrínseca, de certo modo, indivisível, dificultando compreender quando se inicia ou termina essa batalha.
Sei que não existe lugar no céu à minha alma. Pecador de longa data, que sem querer se apaixonou pela profissão. Inda que de quando em onde ponha o lado as durezas da vida e deixe o coração acelerado dar seu palpite. Quase sempre sou condenado ao fogo eteno. Sina triste, desnaturada, da qual por mais tente livrar não encontro o exato caminho. (NÉTTO 2013, p.70).
Zé das Mortes é perseverante nas declarações sobre a inexistência do Cramulhão. Tal fato reanima as considerações do filósofo Santo Agostinho, ao contrapor o maniqueísmo ao assegurar que: “a natureza do homem só é boa na medida em que é, mas, nessa justa medida, ela é boa. Assim, o bem é proporcional ao ser; donde resulta que o contrário do bem, que é o mal, não pode ser considerado como do ser”. É o que se entende ao dizer-se que o mal é somente uma privação, uma deficiência.
O ser humano corrompido seria mal na medida em que vicia nas coisas mundanas (crueldade, injustiça, etc.), mas é bom enquanto criação divina. O homem é o bem (criação divina) em que o mal “reside” (figuração do afastamento). Diríamos que Zé das Mortes tinha consciência disso:
Sei que não existe lugar no céu à minha alma. Pecador de longa data, que sem querer se apaixonou pela profissão. Inda que de quando em onde ponha o lado as durezas da vida e deixe o coração acelerado dar seu palpite. Quase sempre sou condenado ao fogo eterno. Sina triste, desnaturada, da qual por mais tente livrar não encontro o exato caminho. (NÉTTO, 2013, p.70).
Por mais que não descrevesse figura do Cramulhão ele sempre se manifestava em forma de uma voz que ecoava: “E o som ficava azuretando minhas orelhas: __ João Falastrão! João Falastrão! Pega Ladrão! __pra mim isso já era coisa do cramulhão preso na garrafinha, aquela, aquela mesma que o coronel Izabelino me obrigou a receber nas minhas mãos” (NÉTTO, 2013, p.39). É como se ele quisesse dizer ao leitor que o Mal, não existe em matéria; o que impera é o seu sentido moral, que somente se encontra nos atos dos homens, criaturas racionais; que dependem de um juízo da razão, esses atos são livres; os erros morais provêm do fato de que o homem faz um mau uso do seu livre-arbítrio.
O responsável por isso não é nem Deus (absoluta bondade) nem o Cramulhão (que não existe), e sim, o próprio ser humano “pertenço a esse sertão de sangue. Muito da vermelhidão esparramada por todos os cantos saiu do cano de minhas armas.” (NÉTTO, 2013, p.104). Para Agostinho, não deve haver outro Mal no mundo que não seja a deficiência da vontade humana que se rebaixa, que se entrega ao que é inferior numa escala de valores.
Desse modo, vinculamos a tese agostiniana antimaniqueísta com a narrativa de Zé das Mortes: fazer o mal não é nada mais do que subverter a vontade ao que é superior, ainda que inconscientemente, fato possível pela livre opção do querer humano.
CONCLUSÃO
Em virtude do exposto, acredita-se ter demonstrado que o paradoxo entre Bem e Mal no romance extrapola uma perspectiva maniqueísta. No sertão-cerrado de Zé das Mortes, Deus é tido como onipotente e o Cramulhão um não-ente que contrapões o bem. Essa dualidade fundada no maniqueísmo se perde quando se prova a indivisibilidades quando essa relação acontece no interior do ser humano, Santo Agostinho confere essa batalha interna desde o século III, a.C., momento em que a teoria do dualismo entre o bem e o mal ganha força, desde então ,“o homem” ser dotado de luz e trevas, se debate nessa indissociável questão.
Após muitos conflitos evidenciado pelo monólogo interior e a narrativa exterior, que propões questionamentos e especulações sobre o momento e a concretização do pacto ou a incidência de uma figura do mal. Percebemos que essa suposta situação, transmutam as ações do personagem de um tal forma que, o homem bom, é reconfigurado ou induzido por uma força maior à cometer os crimes.
Nessa perspectiva, ao referimos a figura do mal, como um não-ente, levantamos os seguintes questionamentos: por que tanto temor sobre sua existência, principalmente por aqueles que são marginalizados? Esse sertão, em tese, não pode ser dominado pelo que não existe, o que existe é a subversão e os desmandos de um mal causado pelo próprio homem, que para isenta-se de culpa, justifica essas ações na existência de um ser maligno. Essas duas forças, coabitam desordenadamente a mente humana “Confesso que gostava do que aparecia bem rente a mim, o outro eu mesmo tava aprovado.” (NETTO, 2013, p. 40). À medida que o homem faz a travessia, pois “o que existe é homem humano. Travessia” (ROSA, 2001, p. 624). o maniqueísmo perde toda sua razão de ser, no entanto o dualismo permanece.
Outrossim, acontece na relação dialógica com outra obra produzida por um dos grandes autores da literatura brasileira: Guimarães Rosa, que estrategicamente também usufrui do monologo para enredar a trama do personagem Riobaldo, esse jogo dialógico é entendido no decorrer do artigo, acontece nas situações de convergências no que diz respeito ao pacto, em Sertão de Sangue e Grandes Sertões: Veredas que diferente do tradicional pacto fáustico, abordado na obra de Thomas Mann, no qual o protagonista deseja tal feito, tais referências não acontecem em Sertões de Sangue, nem tão pouco em Grandes Sertões: Veredas, pois ambos os personagens são induzidos essa condições, Riobaldo por amor a Diadorim e Zé das mortes para livrar o sertão do mar de sangue.
Entende-se com isso, que a obra Sertão de Sangue dialoga com a problemática existente em Grandes Sertões: Veredas, ao evidenciar o pacto social que é feito com o objetivo de restabelecer a paz no sertão, o dualismo entre o bem e o mal coexistente nos personagens. No entanto, a obra Sertão de Sangue nos apresenta um caráter referencial único, que lhe confere uma especial grandeza e um valor social inestimável, o que contrapões a problemática existente na literatura contemporâneo, pois ela dialoga e, ao mesmo tempo contrapõe a tradição, ao referenciar outras narrativas, mantendo o valor literária individual ao evidenciar as questões social e históricas, que contribuem para conferir à obra um veracidade objetiva e uma subjetividade fantástica.
Dessa forma, recorrendo às teorias bakhtiniana, encara-se o discurso presente na obra de Romulo Nétto como, bivocal, pois trata-se de um discurso internamente dialogicizado, em que duas vozes coexistem e se cruzam multiformemente, correlacionando-se numa intrínseca relação com cronotopo, guiando-se e contrapondo-se parcial ou totalmente. No romance de Nétto, podemos evidenciar, a incidência da transformação metamórfica da estrutura social, a ruptura drástica do formal. O “herói problemático sai de cena e seu lugar é ocupado pelo processo de reconfiguração do personagem, tais como aparece em Kafka e Joyce” (GOLDMAM, p. 436).
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
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LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
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ROSENFELD, Michel. A Identidade do sujeito constitucional. Tradução: Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007.
MANN, T. Doutor Fausto: a vida do compositor alemão Adrian Leverkühn narrado por um amigo. Tradução de Herbert Caro. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
NÉTTO, Romulo. Coleção faroeste sertanejo: Sertões de Sangue. Cuiabá: Carline & Caniato; Ed.1, 2013.
OLIVEA, Elson Dias (2014). Deus e o Diabo no Grande Sertão: Veredas: Uma Leitura Antimaniqueísta. Millenium, 46-A. Número Especial temático sobre Literatura. (novembro de 2014). Pp. 138-152.
ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. 14. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.
Elizabeth KOCK Carvalho Netto
Tenho certeza que se Não Rômulo tivesse vivo ele iria ficar muito felizes e grato por essa análise tão detalhista. Ele era fã do Guimarães Rosa. ObRIGADA!
Simoni RODRIGUES DOS SANTOS
Eu quem agradeço! O conto, a poesia e o Romance do Rômulo me motivaram a conhecer esse sertão de vivências que ele conclama. Sorte a minha tê-lo encontrado nos livros.